30/01/2015

GUGA



                                            Saudades

Augusto Coelho Leal, do IHGRN

“Saudade é isto que a gente sente/Saudade é falta que faz a gente/Alguém que partiu/Alguém que morreu/Alguém que o coração não esqueceu.”


                “Manhã, tão bonita manhã, na vida uma nova canção.” Uma nova canção, assim é a canção da vida, sempre uma nova canção, ao um novo amanhecer. Sempre um sonho a se realizar ou um sonho desfeito, sempre a procura de um novo amor, ou a lembrança de um amor perdido, sempre uma esperança por vir ou uma esperança que se foi. Sempre a lembrança de bons momentos, dos bons amigos.
            O dia raiando, nuvens escuras, o sol tentando aparecer entre elas, o vento nas palhas dos coqueiros, o barulho suave das ondas do mar, um barco desaparecendo na linha do horizonte. Esse é o cenário que vejo agora e que me traz lembranças de amigos que já não posso vê-los, mas, senão senti-los bem perto de mim, nas minhas lembranças. Não posso mais sorrir ou chorar com eles, não posso conversar com eles, apenas pensar os bons momentos vividos com eles. Nestes últimos meses perdi bons amigos, perdas muito grandes, que jamais terão volta. Restou à dor da saudade.
            João Batista Ribeiro, nosso querido João Galinha, partiu ligeiro sem muito aviso. Uma boa pessoa, só fazia mal a ele mesmo, nunca que eu saiba, agrediu ninguém, mas mexeu com muita gente. Bebia demais, era a vida dele, que ele mesmo traçou, e assim viveu.
            Evandro da Costa Ferreira, meu bom amigo Evandro, colega de profissão, amigo de várias décadas. Um homem simples, um bom homem. Um profissional competente. Meu colega do Departamento de Estradas de Rodagem por três décadas, sempre ria com as minhas brincadeiras, mesmo quando eram feitas com ele. Saí do DER por conta de uma aposentadoria precoce, continuamos com a nossa amizade, continuamos em contato até a sua partida. Deixou a sua lembrança, uma boa lembrança.
            Sandra Coelho Correia. Minha querida prima, minha amiga de coração. Partiu de repente, mas tão de repente que na hora que eu soube da notícia, tive um grande susto e fiquei andando na calçada da Casa de Saúde São Lucas olhando para o céu, e perguntando para mim e para Deus porque aquilo tinha acontecido.
            Minha boa prima. Se preocupava com todos, procurava fazer amizade, tratar bem as pessoas. Tinha um cuidado com a minha saúde muito grande, e quase sempre quando nos encontrávamos, ela perguntava como eu estava se estava me cuidando bem. Sempre ria para mim, sempre procurava mostrar alegria. Sabia cativar as pessoas, por isto fez muitos amigos. Partiu, e com ela levou saudades, deixou lembranças, muito boas lembranças, e uma profunda tristeza que ainda hoje me aperta o coração.
            Eduardo Pinheiro de Moura, para mim Dudu Moura. Médico, bom profissional, bom esposo, excelente pai e avô, Amigo de infância, fomos meninos juntos. Quando menino, devido à cor dos seus olhos (verdes), tinha o apelido de “Dudu olho de gato,” e quando adulto tinha os instintos dos felinos, pois só sabia andar juntos com seus, para onde ia levava a sua “ninhada.” Eu como sou também muito família, achava muito bonito aquele seu gesto.
 Partiu também muito rápido, e no momento de sua partida estava muito próximo dele, estávamos na U.T.I. da Casa de Saúde São Lucas, mas por recomendação médica, não me deram a notícia. Quando da minha saída, pedi a minha esposa que me levasse até o seu apartamento, e ela muito preocupada me deu a triste notícia, Dudu tinha partido. De imediato veio à lembrança da sua esposa, filhos e netos, ele viveu para eles.
            Henrique Mario Lira Carreras, esse não morreu, mataram. Mataram um homem de bem, que nunca ofendeu uma mosca, vivia para sua família e com seus amigos. Fazia da sua vida um profundo poço de alegria e assim conquistava todos. Fomos colegas e amigos desde a infância, fomos colega do Atheneu, colega de brincadeiras da juventude. Casamos jovens, muito jovens, quase que na mesma época. Henrique foi vítima do descalabro dos poderes públicos, de um marginal que logo estará nas ruas para repetir os seus crimes contra pessoas inocente e indefesas, e a nossa sociedade assistindo tudo, omissa, sem poder de reação.
            Termino aqui repetindo o poeta: “Tristeza não tem fim, felicidade sim.” Foi-se a felicidade da presença, ficou a tristeza da ausência. Peço a Deus, que todos esses amigos, estejam em um bom lugar e em paz, com a paz que plantaram quando estiveram entre nós.

29/01/2015

Marcelo Alves
Marcelo Alves


Classificação dos precedentes

Este artigo vai em resposta a um grande amigo, estudante de direito temporão, que, tentando organizar seus estudos, me perguntou como poderia classificar os precedentes judiciais.

De modo bem simples, pode-se dizer que a decisão de um caso tomada anteriormente pelo Judiciário constitui, para os casos a ele semelhantes, um precedente judicial (e daí se vê, sem maior esforço, que o precedente judicial existe em qualquer sistema jurídico). Seus atributos, tais como seu poder criativo ou meramente declarativo, seu caráter persuasivo ou obrigatório, é que vão depender dos contornos atribuídos a ele por este ou aquele sistema jurídico.

É exatamente com base nesses atributos que os precedentes são classificados. E, em regra, assim: a) precedentes declarativos ou precedentes criativos; b) precedentes persuasivos ou precedentes (absoluta ou relativamente) obrigatórios.

Chama-se declarativo o precedente que apenas reconhece e aplica uma norma jurídica já existente. Enquanto que o precedente criativo é aquele que cria e aplica uma nova norma jurídica. Como afirma Victoria Iturralde Sesma (em “El precedente em el commom law”), “no primeiro caso a norma é aplicada porque já constitui Direito, enquanto que no segundo a norma se transforma em Direito para o futuro porque é agora aplicada”.

O precedente declarativo, sobretudo nos sistemas jurídicos mais desenvolvidos, é mais comum que o criativo. Isso porque, como se nota claramente, a imensa maioria das questões já está regulada por atos do Legislativo ou mesmo por decisões judiciais anteriores, restando às decisões judiciais novas apenas declarar esse Direito preexistente.

Todavia, apesar de em número menor, os precedentes criativos são tão ou mais importantes que os precedentes declarativos, posto que criam o Direito onde ele ainda não existia.

Além disso, ambos os precedentes, como já se mencionou, são fontes do Direito. Quanto ao precedente declarativo, o fato de já existir previamente Direito sobre a questão não importa. A partir da decisão que estabelece o precedente, ambos são paradigmas para os casos semelhantes. Apenas, enquanto o precedente criativo é uma nova fonte de Direito, o declarativo não o é.

No que diz respeito à classificação em persuasivos e obrigatórios, é importante que se diga logo: todos os precedentes possuem autoridade. A questão agora está em saber qual o grau dessa autoridade. Até que ponto um determinado precedente influencia a decisão judicial de um caso semelhante.

É muito comum a classificação dos precedentes em persuasivos, relativamente obrigatórios e absolutamente obrigatórios.

Um precedente é persuasivo para determinado caso se o juiz desse caso não está obrigado a segui-lo. Se o segue, é por estar convencido de sua correção. E o grau de convencimento de um precedente persuasivo depende, além da correção em si da sua proposição, de vários outros fatores, tais como: a posição do tribunal que proferiu a decisão na hierarquia do Poder Judiciário, o prestígio do Juiz condutor da decisão, a data da decisão, se foi unânime ou não, a boa fundamentação, a existência de vários fundamentos etc. No Direito brasileiro, como regra, os precedentes são persuasivos.

O precedente é relativamente obrigatório quando a corte tem o poder de se afastar dele, desde que existam fundadas razões para tanto. A proposição prevista no precedente é tão incorreta que carece, no interesse da administração da Justiça, ser afastada. Segundo a já referida Victoria Sesma, um precedente pode ser considerado incorreto, deixando de ser aplicado, nas seguintes situações: “quando é contrário ao Direito e quando é contrário à razão. É contrário ao Direito quando já existe uma norma jurídica estabelecida sobre o ponto em questão e o precedente não se conforma com ela. O segundo caso (ser contrário à razão) acontece quando não há Direito declarado que possa ser seguido e os tribunais podem fazer o Direito para essa ocasião. Ao fazê-lo, a sua obrigação é seguir a razão e, na medida em que errarem ao fazê-lo, suas decisões são incorretas e os princípios estabelecidos nela têm o caráter de autoridade defeituosa”. Mas é importante lembrar que um precedente não pode ser simplesmente afastado por não ser tão bem elaborado ou racional como deveria ser. Para ser afastado, é necessário que seja claramente incorreto.

O precedente absolutamente obrigatório é aquele que deve ser seguido, mesmo que o Juiz ou Tribunal o considere incorreto ou irracional. Atém-se ao precedente judicial e não se move o que está quieto (teoria do “stare decisis et non quieta movere”).

Por fim, é importante que se diga que um determinado precedente pode ser obrigatório para determinado caso e persuasivo para outro. Por exemplo, precedente de uma determinada corte obriga as cortes inferiores a ela, mas não as superiores. E já que a qualificação de um precedente como persuasivo, relativamente obrigatório ou absolutamente obrigatório, para cada caso a ser julgado, depende de fatores extrínsecos (tais como a hierarquia entre os tribunais do precedente e do julgamento e a real semelhança entre os dois casos etc.), alguns autores, com os quais concordamos, tendem a desconhecer a utilidade da divisão em absoluta ou relativamente obrigatórios, reconhecendo apenas a existência de dois tipos de precedentes: obrigatório (verdadeiro precedente) e persuasivo. E isso especificamente para o caso a ser julgado.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London - KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

28/01/2015

Uma opinião

 O remédio amargo dos editais

 O artista hoje: entre o 'proponente' e o pedinte
    
Almandrade



    O artista que passa o tempo recluso na solidão do ateliê, trabalhando,
    desenvolvendo sua experiência estética, como um operário da linguagem
    e do pensamento, está em extinção. É coisa de museu.

    Ou melhor, é raridade nos museus de arte, que estão deixando de ser
    instituições de referência da memória para servir de cenários para
    legitimação do espetáculo. Às vezes, com míseros recursos que ficamos
    até sem saber direito: quando nos deparamos com baldes e bacias nessas
    instituições, se são para amparar a goteira do telhado ou se se trata
    de uma instalação, contemplada por um edital para aquisição de obras
    contemporâneas...

    O que interessa na política cultural nem sempre é a arte e a cultura,
    e, sim, o glamour. Em nome da arte contemporânea, faz-se qualquer
    coisa que dê "visibilidade".

    As políticas públicas foram relegadas às leis de incentivo à cultura e
    aos editais públicos. Nunca se fez tantos editais neste País, como
    atualmente, para, no fim das contas, fazer da arte um "suplemento
    cultural", o bolo da noiva na festa de casamento.

    Na fala do filósofo alemão Theodor Adorno: "As obras de arte que se
    apresentam sem resíduo à reflexão e ao pensamento não são obras de
    arte". Do ponto de vista da reflexão, do pensamento e do conhecimento,
    a cultura não é prioridade. Na política dos museus, o objeto já não é
    mais o museu que se multiplicou, juntamente com os chamados "centros
    culturais", nos últimos anos.

    Com vaidade de supermercado, na maioria das vezes, eles disponibilizam
    produtos perecíveis, novidades com prazo de validade, para estimular o
    consumo, vetor de aquecimento da economia. A qualificação ficou no
    papel, na publicidade do concurso.

    Esses editais que bancam a cultura são iniciativas que vêm ganhando
    força. Mostram ser um processo de seleção com regras claras para
    administrar o repasse de recursos, muito bem vendidos na mídia, como
    métodos de democratizar o "acesso" e a "distribuição de verbas" para
    as práticas culturais.

    Mas nem são tão democráticos assim. Podem ser um instrumento possível
    e eficiente em certos casos, mas não são a solução, é possível
    funcionarem, também, como escudo, para dissimular responsabilidades
    pela produção, preservação e segurança do patrimônio cultural.

    Considerando-se, ainda, a contratação de "consultorias", funcionários,
    despesas de divulgação, inscrição... o trabalho árduo e apressado de
    seleção... é tudo, enfim, um custo considerável, que, em último caso,
    gera "serviços" e renda.

    O artista contemporâneo deixa de ser artista para ser proponente,
    empresário cultural, "captador" de recursos, um especialista na área
    de elaboração de projetos, com conhecimentos indispensáveis de
    "processo público" e interpretação de leis. Dedica grande parte de seu
    tempo a esse negócio burocrático, que é a elaboração e execução de
    projetos, prestações de contas etc., todos contaminado pela lógica do
    marketing... coisas incompatíveis com o artista em si, que apostou na
    arte como uma "opção de vida" e com forma de conhecimento, algo que
    exige dedicação exclusiva...

    Ou, pior ainda: o artista fica à mercê de uma "produtora cultural",
    para quem essa política de editais e fomento à cultura é, aliás, um
    excelente negócio...

    Mais uma coisa é preocupante: e se essa política de editais se
    estender até a sucateada área da saúde, por exemplo? Imaginem uma
    "seleção pública" para pacientes do Sistema Único de Saúde, que
    necessitem de procedimentos médicos... Os que não forem
    "democraticamente contemplados", teriam de apelar para a providência
    divina, já engarrafada com a demanda de tantos pedidos...

    Nem é bom imaginar. Que esta praga fique restrita aos limites da
    esfera cultural... Na pior das hipóteses, é uma "torneira" que sempre
    se abre para atender parte de uma superpopulação de artistas,
    proponentes, pedintes...

    O artista, cada vez mais, é um técnico passivo com direito a diploma
    de "bem comportado" em "preenchimento de formulário". E seu produto
    ficou relegado ao controle dos burocratas do Estado, e à "boa vontade"
    dos executivos de marketing das grandes empresas...

    Se o projeto é bem apresentado, com boa "justificativa" de gastos e
    retornos, o produto a ser patrocinado ou financiado... se é mediano,
    se é excepcional, não importa! O que importa é a "formatação", a
    "objetividade" do orçamento, a clareza das "etapas" e a
    "visibilidade", o "produto final"...

    Como sempre, existem as chamadas exceções, mas...

    Almandrade
    (artista plástico, poeta e arquiteto)

27/01/2015

GG



R O O S E V E L T   E   G E T Ú L I O
GILENO GUANABARA, do IHGRN

            1943. Mês de janeiro, na cidade do Natal. Fez-se crer que as autoridades locais, na época, de aproximadamente 40 mil habitantes, não tivessem a dimensão do que representou o pouso de dois Flying Clipper, Boeing B-314 da Pan American, a serviço da Marinha Americana, nas águas serenas do Rio Potengi, às 7,30 horas, no dia 28. Em voo sem escala, num percurso inimaginável desde Clasablanca, no Marrocos, até a cidade destino, uma das aeronaves trazia de volta, em sua comitiva, o presidente dos EUA, Franklin Delano Roosevelt. Sem passar pela estação da Panair recém construída, o Prédio da Rampa, foi conduzido em lancha ao torpedeiro USS Humbolt, este surto no estuário do rio. No dia seguinte, deu-se o encontro histórico entre o Presidente americano e Getúlio Vargas, sem que antes o visitante se reunisse em separado com o seu embaixador, Jefferson Caffery.
O presidente do Brasil foi trazido do Rio de Janeiro pelo Comandante da Quarta Frota da Marinha dos Estados Unidos, numa aeronave americana, tendo ainda por testemunha o embaixador americano. Getúlio, como bom anfitrião, chegou a Natal, diz-se, sem que ninguém soubesse, no dia anterior, e instalou-se no navio Jouett.
A História oficial registra dentre os outros motivos de menor importância, os que foram chancelados durante o encontro, como a influência nazifascista no Brasil; a necessária adesão aos aliados contra o Eixo; a cessão do território nacional para instalação de bases militares americanas que permitisse a incursão aérea dos aviões americanos ao Norte da África; a participação de tropas brasileiras no conflito e, por fim, em caráter compensatório, o financiamento de indústrias de base, a serem instaladas no Sul do país. Como então se resumir a tão pouco a celebrada visita?...
A primeira notícia de cessão de parte do território nacional, para efeito de instalação de bases militares americanas, deve-se a expediente enviado por Getúlio Vargas, através do embaixador Macedo Soares, em janeiro de 1937, dirigido ao Departamento de Estado norte-americano. Na segunda metade daquele ano, Getúlio, que se incomodava diante dos rumos da sucessão presidencial e as conjurações que lhe faziam oposição – os comunistas em 1935 e o assalto ao Palácio do Catete pelos integralistas, em 1936 – articulou a farsa do Plano Cohen, pelo que, segundo a sua revelação pública, estaria em andamento um golpe contra as instituições democráticas então em vigor. Assim, para combate-lo, obteve o apoio parlamentar quase unânime da Câmara Federal, para a decretação do Estado de Sítio. Na sequência, Getúlio decretou o fechamento do Congresso Nacional, limitou o funcionamento do Poder Judiciário, instalou a ditadura, o regime de exceção a que se denominou Estado Novo, revogou a Constituição de 1934 e outorgou uma nova Carta.
Embora o aparato político-administrativo do Estado Novo internamente ainda se mantivesse a todo vapor, dado o aparelhamento ideológico das instituições pelo Estado autoritário –Justiça do Trabalho e institutos de previdência; outorga da Constituição Polaca e da CLT; criação de órgãos colegiados de controle profissional; censura da imprensa; sindicalismo oficial; repressão policial aos  divergentes do regime; fim dos partidos e a legislação através dos malsinados decretos-leis -, pelo mundo afora, a conferência realizada em Casablanca, em que pese a ausência de Stalin, revelou o sentimento vitorioso que já se anunciava na derrota iminente dos nazifascistas às margens do Rio Volga, pelas tropas soviéticas.
 Ao que Churchill sinalizou em Casablanca como o começo do fim da guerra, teve significado maior a inconfidência de Roosevelt, que revelou só aceitar a rendição da Alemanha e dos países do eixo de forma incondicional. Tudo isso fora trazido à ciência de Getúlio por Roosevelt de viva voz. Na ausência de outro aporte, restou ao caudilho redimensionar suas posições até então em favor do Eixo. A persistência de Oswaldo Aranha, embaixador em Washington, findou vitoriosa. Coube a Getúlio exercitar o seu parco inglês com o visitante, rir muito, baixar a guarda e pedir arrego. Os EUA eram os maiores importadores de café brasileiro e a Alemanha a maior importadora de algodão, o que os EUA cultivavam em larga escala.
Diz o brocado que em mais de uma pessoa é impossível existir segredo. A passagem de Roosevelt por Natal, face o incômodo do longo percurso da travessia; os esquemas de segurança acionados; os custos e o alcance das autoridades civis e militares envolvidas, não permitiam a conclusão ingênua de que o encontro em Natal fora um ato secreto e de propósitos tão singelos. Não fosse a inusual presença de vasos de guerra discrepantes da pachorra da bacia do Rio Potengi, ou da presença de adolescentes que nadavam na praia do Canto do Mangue, os quais reconheceram Getúlio, a quem chamaram carinhosamente de “GeGê”, com quem dialogaram e receberam donativos em moeda que atirou às águas do rio, não é possível que, pelo menos, uma das partes, não tivesse a devida proporção do motivo que o seu interlocutor ilustre era missivista. Ainda mais, a despreocupação com que os presidentes percorreram as ruas da cidade em um jeep aberto, indo à Base Almirante Ary Parreiras e depois até a Base Aérea de Parnamirim, sendo reconhecidos e aplaudidos no percurso por populares, sem incidentes, torna notório que outras motivações foram confabuladas, como a política de interesses regionais futuros.
Ao final da visita, Roosevelt, que pelas águas do Rio Potengi veio, foi-se. Seguiu para Miami a bordo do primeiro “Air Force One”. De lá para Washington, quando só então foi divulgada a reviravolta de Stalingrado e os novos destinos do mundo.
Desde a visita de Roosevelt a Getúlio no Rio de Janeiro, no ano de 1936, a admiração entre ambos viu-se ampliada. A mudança de rumo que se operou ao fim do conflito mundial; a reviravolta política observada no Brasil, nos anos seguintes a 1943; a representatividade obtida a partir da constituinte de 1946, houve um avanço inegável da política. Só que a guerra fria prosseguiu impávida a nos atormentar.

25/01/2015

TOMISLAV



OS “CABOCLOS DE CARÚBAS”
Tomislav R. Femenick – Da diretoria do IHGRN. Mestre em economia, com extensão em sociologia e história.

O agrupamento de pessoas conhecido como “caboclos de Caraúbas” é formado por descendentes de Francisco de Souza Falcão, tenente-general português que chegou a Caraúbas por volta de 1745, trazendo uma carta de sesmarias (título de propriedade que os reis de Portugal davam aos novos povoadores) que lhe dava direitos sobre as terras da região. Vindo da cidade do Cabo, em Pernambuco, com familiares e alguns agregados ele se instalou às margens do Riacho das Carnaubeiras, um afluente do rio Apodi, onde formou uma fazenda de gado, origem da cidade de Caraúbas.
A família Souza Falcão exerceu a liderança política e econômica do lugar, até quando as perdeu para os Fernandes Pimenta. Desde então os seus descendentes passaram a viver nas localidades Pedras, Retiro, Baixa Grande, Defuntos, Cachoeira e, principalmente, Mirandas, vivendo com um mínimo contato com outras pessoas que não os do seu grupo. Hoje esse isolamento está quebrado e os “caboclos” se miscigenaram com os outros moradores da região, subsistindo apenas na tradição de alguns pequenos grupos.
Como resultado desse isolamento (enquanto houve) e dos casamentos endogâmicos (entre familiares), alguns deles apresentavam atrofia nas juntas ósseas, membros superiores bem maiores do que o normal, bem como alterações nas articulações das palavras e pouco desenvolvimento cognitivo. Na segunda metade do século passado foram registrados alguns casos mais graves de anomalias físicas, inclusive um de hermafroditismo.

POR HERANÇA OU POR TOPONÍMIA?

Subsiste um aspecto a ser resolvido. Talvez baseadas no fato de que a palavra “caboclo” designa um individuo nascido da união de índios e brancos, algumas pessoas dizem que os “caboclos de Caraúbas” são descendentes de índios, chegando a identificar na sua linhagem Felipe Camarão, o índio herói nacional da resistência à invasão holandesa.
Todavia, os próprios “caboclos de Caraúbas” não se identificam como tal e atribuem essa designação ao fato de seus ancestrais serem provenientes da Cidade do Cabo. Para complicar mais ainda essa problemática, no Município de Caraúbas e nos que ficam em seu entorno há uma grande população autenticamente resultado da miscigenação de índios com brancos, notadamente nos sítio Cachoeira e Apanha-Peixe.

PESQUISA ESTÁ ESPERANDO PUBLICAÇÃO
           
As primeiras pesquisas científicas sobre os “caboclos de Caraúbas” foram desenvolvidas em 1967, pelos departamentos de antropologia cultural, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mossoró, e de sociologia, da Faculdade de Serviço Social de Mossoró, então faculdades isoladas, antes da formação da Universidade Regional do Rio Grande do Norte, a atual Universidade Estadual do Rio Grande do Norte.
Na época desses estudos existiam cerca mil pessoas nos agrupamentos dos “caboclos”, que viviam em uma pequena faixa de terra com aproximadamente 100 quilômetros quadrados. Semianalfabetos, não recebiam nem visitas dos políticos nas épocas de campanhas (aos analfabetos não era dado o direito de voto); muito menos recebiam qualquer assistência dos governos.
            A pesquisa pioneira das faculdades mossoroenses não chegou a ser publicada na época de sua realização. Consta que foi “requisitada” pelas autoridades militares; vivia-se o tempo da ditadura militar. De lá para cá, diversos estudos já foram publicados sobre os “caboclos de Caraúbas”, entre eles os de autoria de Maria Consuelo Oliveira (1994), Raimundo Soares Brito (1999), José Nunes Cabral de Carvalho (1983), Susana Rolim Soares Silva, (2002), Marcos Roberto Fernandes Gurgel (2003), Marcos Roberto Fernandes Gurgel (2003), Roberta Borges de Medeiros Falcão (2005), entre outros.
Em 1964, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais chegou a manter uma escola que funcionava de sete da manhã até a noite. Ali eram ministradas aulas para cerca de cinquenta alunos. Na época em que os estudantes e professores coletaram dados sobre a povoação, havia apenas uma pequena escola municipal, com menos de dez crianças matriculadas, pois não existem condições para acomodar um número maior de alunos.
Muitas pessoas do grupo jamais tinham visto um médico e, segundo declararam, até então nunca tinham recebido visita de nenhum profissional de saúde pública. Eram comuns casos de mortes causadas por uma simples dor. O mais velho dos caboclos possível de localizar tinha aproximadamente 80 anos, o que era um caso raro entre eles, pois a idade de sobrevivência média foi calculada em torno de trinta anos. De uma maneira geral não havia crime e eles não eram dados a bebidas alcoólicas. O maior número de morte de adultos era por suicídio, geralmente por enforcamento.
A atividade econômica era voltada para produção agropastoril, principalmente para o cultivo do milho, feijão e mandioca e criação de caprinos e ovinos. O trabalho era feito com ajuda mútua, no sistema de mutirão. Produziam farinha de mandioca, para o que dispunham de três bolandeiras. Todo o excedente de produção era vendido na feira de Caraúbas, aos sábados, ou em Mossoró; nesse caso via terceiros.

CONQUISTAS FUNDIÁRIAS E MELHORIAS

Pequenas, feitas de taipa e barro batido, sem espaços para entrada de luz e ventilação, baixas e sem higiene, assim eram as casas em que vivem os caboclos. No entanto, em uma delas foi encontrado um rádio de pilha, como sinal de contato com o progresso. Nessa casa, todas as noites eles se reuniam para ouvir musica e, surpreendentemente, as notícias sobre política.
Muito embora já tivessem sido os donos absolutos de toda a sesmaria de Caraúbas, nos anos 1960 eles não eram os proprietários das terras em que viviam. Eram poucos os que possuem títulos de domínio. No governo de Aluízio Alves, as terras dos caboclos foram desapropriadas com o objetivo de doa-las legalmente aos seus moradores, legalizando a situação de posse e domínio. Até 1967, trinta e cinco títulos já tinham sido entregues e mais e cento e cinquenta aguardavam o andamento da burocracia do Estado.
Quando do estudo realizado em 1967, o maior problema do núcleo era a falta de água, conseguida apenas em um açude ou em pequenas cacimbas. Às vezes era necessário que se andasse mais de quatro quilômetros, para se conseguir “algumas latas ou barris d’água”. Foram relatados casos de crianças que teriam morrido por falta de água.
O esforço para levar água a esse povo se iniciou em 1968. Foi um misto de festa e pavor. Uns corriam para perto e outros se escondiam longe. No entanto todos estavam curiosos e admirados com aquele monstro que se erguia para o ar. Para eles, era algo inexplicável. Essa cena aconteceu em um entardecer de meados de junho daquele ano, na terra dos “caboclos de Caraúbas”, quando ali chegaram dois caminhões, trazendo uma sonda que irá perfurar o chão para resolver um dos seus principais problemas: a falta de água.
A perfuratriz tinha sido prometida cinco dias antes por Dix-huit Rosado, então presidente do INDA-Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário, mas ninguém acreditava que ela fosse realmente para valer, pois, “nem era época de eleição”.

MÚSICA E DANÇA ATRAÍRAM A ATENÇÃO DE JORGE AMADO

O escritor Jorge Amado e a pesquisadora Eneida (Eneida de Villas Boas Costa de Moraes, ou simplesmente Eneida, como assinava seus livros), quando visitaram Mossoró em 1959, foram até Caraúbas conhecer e estudar os caboclos, principalmente o “samba dos caboclos”. Essa música e essa dança teriam se originadas no início do século XX, e serviram para comemorar a colheita, no mês de junho. Jorge e Eneida anotaram que o ritmo e a dança nada tinham com o samba propriamente dito, pois as mulheres arrastam os pés e os homens fazem acrobacias, numa coreografia que faz lembrar as danças ibéricas.
Na ocasião do estudo acadêmico, quase que já não mais havia a prática dessa tradição folclórica. Somente três homens e algumas mulheres sabiam dançar o “samba dos caboclos” e apenas um só homem sabe executar a música (em uma sanfona). Hoje há um movimento que tenta recuperar essa manifestação da cultura popular.
Em estudo mais recente, a antropóloga Susana Rolim Soares Silva, afirma que: “Na atualidade, pode-se perceber que tal expressão cultural consiste numa mistura de samba com danças juninas e é constituída basicamente por três passos: o Martelo, momento no qual os protagonistas, colocados lado a lado, pisam fortemente no chão; Cigana, quando os pares começam a rodopiar pelo salão, equilibrando-se um parceiro no outro na tentativa de se manterem de pé, e o Maracatu. Os instrumentos musicais que dão o tom da dança são: o triângulo, a sanfona e o pandeiro, entre outros”.
A religiosidade dos habitantes do núcleo dos caboclos é um misticismo voltado para uma antiga imagem de São Sebastião, existente na igreja matriz da cidade. Esse “santo” teria sido trazido para Caraúbas em 1750 (ou no final do século), quando foi iniciada a construção da capela que posteriormente foi transformada na igreja que hoje é a matriz da paróquia. Há alguns anos, os habitantes da cidade resolveram comprar uma imagem nova e levar o São Sebastião “velho” para outra capela. Os caboclos não deixaram, inclusive fazendo ameaças. No dia 20 de janeiro de cada ano, elas vão à cidade para acompanhar a procissão do santo “velho”.
A imagem nova, mais bonita, nem é olhada. O “santo” é o velho, para esses descendentes dos fundadores de Caraúbas, uma das maiores cidades da zona oeste do Rio Grande do Norte. Na festa de São Sebastião, “a cultura cabocla ganha maior visibilidade, legitimação e diferenciação em relação a outros grupos, sobretudo os caraubenses, embora estejam unidos pela religião, pela fé e pela tradição na família vinda de Portugal” – anda segundo Susana Silva.