A imitação
Uma coisa que sempre me impressionou – e tem me impressionado cada vez
mais nestes tempos de Internet e de uso constante das tais “redes
sociais” – é a capacidade do ser humano para imitar/repetir cretinices e
“lugares comuns”, como se tivesse dizendo algo deveras importante. E eu
não estou falando aqui da propagação intencional das “fake news”. Isso é
outro problema, muitíssimo grave e até criminoso. Falo do simples ato
de repetir estultices e platitudes, embora com os trejeitos de um Rui
Barbosa (1849-1923), certo de que afirma a “coisa mais certa de todas as
coisas”.
Outro dia, dei de cara com uma explicação científica
para essa mania de imitação nos animais racionais, o que me deu a ideia
de escrever este artigo. Antes que alguém me pergunte, já adianto que
não se trata da teoria do “reflexo condicionado” de Ivan Pavlov
(1849-1936), muito embora eu já tenha ouvido falar de sinais de
salivação nos seguidores do nosso “rei dos animais”.
Esse meu
achado se deu com a leitura de um pequeno texto – “Les lois de
l’imitation”, de Solenn Carof – sobre Gabriel Tarde (1843-1904), que faz
parte do caderno “Les 100 penseurs des sciences humanies” das
edições/revista “Siences Humaines” (abril-maio de 2018). Uma revista que
só me caiu em mãos porque, enferrujado na arte de “Madame Bovary”,
voltei a estudar o idioma do grande Gustave Flaubert (1821-1880). Corri
para a boa Aliança Francesa de Natal, mas saudoso do meu tempo de
Alliance Française Paris Ile-de-France. À época, Paris era uma festa!
Segundo li no texto acima referido, para Gabriel Tarde, basicamente, a
realidade social que enxergamos é formada por um conjunto de
consciências individuais ligadas entre si pelas “leis da imitação”. Na
verdade, “isso se dá como uma onda ou uma corrente magnética, que se
propaga de indivíduo para indivíduo. Cada indivíduo recebe dos outros,
dessa maneira, ideias ou representações das quais se apropria quando as
julga boas, copiando-as e transformando-as. G. Tarde vê nisso o
princípio fundamental do fato social. A imitação está no centro de toda a
vida social e explica bem tanto as situações estáveis como as mudanças.
Assim, o gênio é aquele que foi capaz de reagir aos vários fluxos
imitativos de modo a criar algo diferente. A história nada mais é do que
o processo pelo qual os indivíduos se reinventam na imitação, de uma
civilização para outra. Em L’Opinion et la Foule (1901), G. Tarde também
faz uso do princípio da imitação para explicar o nascimento da opinião
pública. Ela é formada pela coesão mental que nasce entre leitores
separados. Essa coesão, possível graças à imitação, transforma uma massa
de leitores anônimos em um coletivo de opiniões” (e aqui fiz uma
tradução livre do texto em francês).
Ao mesmo tempo filósofo,
sociólogo e criminologista, outrora rival de Émile Durkheim (1858-1917),
Gabriel Tarde é considerado um dos fundadores da psicologia social e,
embora esquecido um tempo, volta, de uns anos para cá, à ribalta das
ciências humanas. Merecido. Em tempos de hiperinflação das redes
sociais, se quisermos entender cientificamente a tal opinião pública,
devemos prestar atenção no que visionariamente disse o autor de “As
multidões e as seitas criminosas” (1893), sobretudo nas suas “leis da
imitação”, mesmo que já decorridos mais de cem anos do seu falecimento.
E foi para me familiarizar mais com Gabriel Tarde que tomei
emprestado, da biblioteca do meu pai, uma edição do seu livro clássico
“A opinião e as Massas” (“L’Opinion et la Foule” já referido acima),
publicado entre nós pela Martins Fontes, em 2005, como parte da “Coleção
Tópicos” dessa ótima editora (coleção que, com aquela capa vermelha
característica, muitos de vocês devem conhecer).
Comecei a
leitura pela Introdução, é claro. É de Dominique Reynié, acadêmico e
cientista político francês, especialista na “ciência da opinião
pública”. Gostei. Especialmente, na parte em que o resenhador lembra
que, para Tarde, “a imitação, compulsória ou espontânea, eletiva ou
inconsciente, transforma a descoberta individual num fato social. A
opinião, a ideia ou o desejo de um torna-se progressivamente a opinião, a
ideia ou o desejo de um grande número. O futuro normal de uma inovação é
sua propagação, seu futuro ideal é a propagação universal. À questão de
saber sobre o que repousa esse fenômeno de imitação de um indivíduo por
outro, depois por uma multidão, Tarde responde que ele provém da
sugestão, que não é mais que uma forma de ‘hipnotismo’”.
Entretanto, mais à frente, descobri que Gabriel Tarde também explica o
fenômeno da imitação não só como resultado de um hipnotismo, mas,
também, de um sonambulismo. Aí me assustei. Consta que não sou
sugestionável. Mas preciso dormir. E se essa imitação toda é fruto do
sono e do sonho, de tanto hoje assistir repetir e triunfar as nulidades,
rogo tanto a Deus como ao diabo que me livrem de ser abduzido por esse
pesadelo.
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP