07/11/2019

Escritores na polícia
Não faz muito tempo, eu escrevi aqui sobre Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Oscar Wilde (1854-1900) e o nosso Graciliano Ramos (1892-1953), escritores que, por motivos diversos, passaram uma temporada – uma penosa e longa temporada, sobretudo no caso do autor russo – em cana. E registrei que os três colocaram no papel esse pedaço de suas vidas, as injustiças e vicissitudes que então sofreram, o que, de resto, é a única coisa boa que se pode tirar dessas tristes páginas da história.
E trabalhando ainda na mesma temática, até para poder escrever com alguma propriedade, andei consultando um livrinho chamado “La polices des écrivains” (Éditions Horay, 2011), de Bruno Fuligni, que adquiri faz algum tempo, em lugar agora incerto e não sabido.
“La polices des écrivains” confirmou uma ideia que eu já tinha: escritor é bicho assaz “confusento”, metendo-se, com frequência e indevidamente, com a polícia. Se às vezes é por algo mais banal, como uma boa bebedeira, outras vezes, a coisa é, digamos, mais séria.
Em “La polices des écrivains”, que foca nos escritores franceses ou que viveram na França, temos histórias ou dossiês de gente como o grande Victor Hugo, passando por Alexandre Dumas, o filho (que fique claro, para não mancharmos a reputação do pai dos três mosqueteiros), pelos surrealistas André Breton e Jacques Prévet, chegando ao existencialista e superchato Jean-Paul Sartre (embora ser chato não seja ainda motivo para prisão, infelizmente).
Por motivos distintos, achei bem interessantes os dossiês a respeito de Paul Verlaine (1844-1896) e Arthur Rimbaud (1854-1891), Ivan Turguêniev (1818-1883) e Émile Zola (1840-1902).
Sobre os poetas Verlaine e Rimbaud, que foram amantes, é muito interessante a correspondência “confidencial”, de novembro de 1882, do Procurador-Geral de então ao Prefeito de Paris, descrevendo o conhecido episódio dos tiros desferidos pelo primeiro no segundo, no já distante ano de 1873. Na ocasião, após uma coabitação em Londres, o jovem Rimbaud, com apenas 19 anos, havia rompido com Verlaine. Este se desespera. Bêbado, vai à loucura. Em um hotel de Bruxelas, Verlaine “estava armado com um revólver. E ele implorou a Rimbaud para não deixá-lo. Recebeu uma recusa obstinada. Exaltado, desesperado, Verlaine apontou para o amigo e atirou, atingindo-o no pulso”. Confusão dos diabos, para dizer o mínimo. Verlaine é condenado a dois anos de prisão pelo Tribunal Correicional de Bruxelas, sendo a decisão confirmada pela Corte de Apelação, tudo no mesmo ano de 1873.
O dossiê do “niilista” Turguêniev é menos dramático, com certeza. Mas é muito interessante, sobretudo porque repleto de preconceitos ideológicos, políticos e de nacionalidade. Um relatório da “Préfecture de Police” de Paris, de janeiro de 1887, sobre o Sr. Tourgeneff, Yvon, com cerca de 50 anos de idade e celibatário, afirma: “Em resumo, resulta das informações colhidas que o Sr. Tourgeneff é, em política, um revolucionário convicto, partidário absoluto das doutrinas de Bakunin, que ele certamente deve propagar tanto quanto possível, sobretudo entre a juventude russa que vive em Paris”. Alguma coincidência com as paranoias do nosso presente?
Por fim, o caso de Émile Zola. O dossiê do criador da saga “Les Rougon-Macquart” (composta de vinte romances, para quem não sabe), é simplesmente “monumental”, segundo registra “La polices des écrivains”. A maior parte do material, claro, está relacionada ao caso Dreyfus e, em particular, ao processo do “J’acusse!”, dos quais Zola é certamente protagonista. E aqui, dos arquivos, destaco um relatório sobre a morte do grande naturalista, acontecida na noite entre 28 e 29 de setembro de 1902, alegadamente de asfixia acidental por monóxido de carbono. Em 1º de outubro de 1902, relata o Comissário de Polícia responsável ao “Préfet” da Polícia de Paris: “A autópsia realizada ontem, 30 de setembro, pelos médicos Thoinot e Vibert, legistas, estabeleceu claramente as causas da morte como devidas (por asfixia acidental) ao monóxido de carbono. O Sr. Girard, médico do Laboratório Municipal, que examinou as amostras de sangue colhidas do falecido, da Sra. Zola e do cachorrinho, já havia descoberto no exame espectrográfico a presença desses traços de monóxido de carbono tanto no sangue do marido como nos sangues da esposa e do cão”. Está aí a versão oficial das autópsias de Zola e família (incluindo o seu cãozinho, curiosamente). Mas acredito que as circunstâncias desse “acidente” nunca foram totalmente investigadas. Eu, pelo menos, embora pouquíssimo afeito a teorias conspiratórias, continuo encafifado com a coisa.
Bom, pelo exposto, de minha parte, embora escreva aqui aos domingos, não quero me meter em confusão alguma com a polícia. Seja daquelas graves (tiros, asfixias, revoluções etc.) ou mesmo por simples bebedeira. Prometo até tornar-me abstêmio, se for o caso. Apenas, a exemplo do Santo e Bispo de Hipona, rogo não precisar pagar essa pequena promessa já agora.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

H O J E


INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RN IHGRN <ihgrn.comunicacao2017@gmail.com>

Convidamos todos para a palestra sobre JOSÉ AUGUSTO BEZERRA DE MEDEIROS, que será ministrada pela professora doutora Marta Maria de Araújo.
Todas as informações estão contidas no convite, que ora anexamos.
Aguardamos a sua nobre visita.

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO



ENOCK DE AMORIM GARCIA

Valério Mesquita*


Recordo hoje, a figura inesquecível de um mipibuense nascido em 1906 e falecido em 1999, de alma macaibense. Advogado criminalista formado pela Universidade de Pernambuco exerceu em três gestões, fato incomum aliás, a Secretaria de Agricultura do Estado nos governos de Rafael Fernandes, Ubaldo Bezerra e José Augusto Varela. Foi casado com minha prima legitima Nadir de Mesquita Meira, filha de João Meira Lima (ex-intendente do município de Macaíba) e Amélia Názia de Mesquita, irmã do meu pai. A honradez e a competência de Enock Garcia fizeram-no ainda ocupar outros cargos diretivos tais como: delegado auxiliar dos interventores: Antônio Fernandes Dantas, Orestes da Rocha Lima e de Rafael Fernandes Gurjão, tendo como interventor substituto desse último combatido os comunistas ao lado de Dinarte Mariz na Serra do Doutor. Posteriormente foi juiz eleitoral em Natal e fundador da 1º Exposição de Gado do Estado quando o parque dos eventos agropecuários ainda era no Baldo.
Homem ameno no trato, de coragem pessoal, Enock, além de agropecuarista foi eleito deputado federal pela UDN em 1950. Desde jovem,  revelou o seu talento, a sua capacidade, assumindo a função de mensageiro dos Correios e Telégrafos de Natal, aos 12 anos de idade. Em 1931, chegou a radiotelegrafista em Recife, onde lá se formou em Direito, em 1932. Manifestava por Macaíba uma afeição de filho, aqui residindo durante muito tempo à rua Heráclito Vilar, no famoso e tão popular “sítio do Dr. Enock”. Lá, ao lado dos seus filhos Roosevelt, Wallace, Franklin e Enoquinho vivi vários momentos de minha infância.

O grande legado deixado pelo exemplar causídico, escritor, poeta, trovador, promotor público, foi a Escola Experimental Agrícola de Jundiaí, tendo sido o seu fundador e primeiro diretor. Esse impulso vivificador de Enock já formou ao longo do tempo, inúmeras gerações que constroem, hoje, o desenvolvimento econômico do Rio Grande do Norte. A sua visão de educador e administrador foi extraordinária. Mantive com ele, por diversas vezes, conversas na casa de meus pais, no seu sitio e posteriormente em Natal, em sua residência.  Afetivo com os filhos, foi um pai de família exemplar, um homem inesquecível. Macaíba ainda não lhe tributou uma homenagem condigna pelo que realizou em benefício da terra. A Câmara Municipal, por exemplo, ao longo do tempo, esqueceu de lhe outorgar o título meritório de cidadão macaibense. O seu filho Franklin, reunirá seus escritos, depoimentos, poesias, para enfeixá-los num livro que deve merecer o apoio dos órgãos oficiais pois Enock dedicou a sua vida a causa pública. Terá o meu irrestrito apoio.

(*) Escritor.


DOIS HOMENS DIGNOS QUE PARTIRAM



No último dia 4 de novembro de 2019, faleceu em Natal uma das figuras mais dignas da terra potiguar LUIZ GONZAGA MEIRA BEZERRA, Jornalista, desportista, comerciante e servidor público com uma trajetória de honra, deixou muita saudade a todos que tiveram a oportunidade de conhecê-lo.

Nasceu em Acari/RN em 21 de junho de 1923 e era filho de Silvino Bezerra Neto e Maria Meira e Sá Bezerra. Foi sobrinho do ex-governador José Augusto Bezerra de Medeiros.

Das diversas atividades de Luizinho, foi ao esporte do Rio Grande do Norte que prestou grandes serviços como desportista e pesquisador. É considerado uma lenda da crônica esportiva do estado. Homem digno e íntegro. Deixa a esposa Zilda Bezerra, além dos 5 filhos, 11 netos e 7 bisnetos.
  * * * 

    Na data de ontem, 06 de novembro de 2019, partiu para a eternidade o exemplar cidadão EIDER FURTADO DE MENDONÇA E MENEZES, membros das AcademIia de Letras Jurídicas do Rio Grande do Norte e também do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, aos 96 anos, deixando comovida as entidades e a população potiguar a quem tanto serviço prestou e particularmente a sua alentada família. Sobre ele apresento esta singela homenagem.. 

Breve biografia do Doutor Eider Furtado de Mendonça e Menezes


Nascido aos 23 de abril de 1924, em Natal, é filho de Gil Furtado de Mendonça e Menezes e D. Maria Emília Furtado. Esses são os seus primeiros homenageados no seu livro de memórias “Audiência de um Tempo vivido” (2004): “Eles me fizeram vir ao mundo e, na sua simplicidade, com os seus cuidados e o seu carinho, me mostraram os caminhos da vida. Por isso cheguei até aqui”. 
Primeiras letras com a Professora Águeda de Oliveira Sucupira (Naná), sobre quem dedicou um capítulo especial no seu livro de memórias. Ela era Diretora de uma escola municipal postada na Av. Rio Branco (local onde o BB construiu sua sede da cidade alta), nos idos de 1931 onde estudou até 1934. Não esqueceu as suas auxiliares  D. Helena, Preta e Auta, sobre as quais derrama suas emoções mais caras, aliada a um amor quase filial, incluídas também em suas permanentes orações, acrescentando “Por isso, eu também tenho saudades da minha primeira professorinha. Foi ela quem me ensinou o bê-á-bá e eu sequer soube por alguém quando o Senhor do Universo a chamou para perto de si, para “desarnar” as criancinhas que, certamente, chegaram ao céu sem conhecer as primeiras letras nem os primeiros números. Que saudades Naná”. Em 1935 foi para o Colégio Pedro Segundo, do Prof. Severino Bezerra de Melo, daí para a escola particular do Prof. Antônio Fagundes, posteriormente o tradicional Atheneu Norte-rio-grandense, em 1937, aos 13 anos de idade, tendo concluído o Colegial em 1944 e, somente em 1955, com 30 anos de idade, submete-se ao vestibular da Faculdade de Direito de Natal.
Bacharel em Direito pela UFRN, 1ª Turma, em 9 de outubro de 1959, denominada “Turma Clóvis Beviláqua”, paraninfo Edgar Barbosa Aula da saudade Paulo Viveiros.
Em 1968 iniciou o seu magistério universitário, levado pelas mãos do colega de turma Reginaldo Teófilo, a pedido de João Wilson Mendes de Melo, que comandava a Faculdade de Ciências Econômicas, Contábeis e Atuariais, começando nas lides do Direito Financeiro e Tributário, depois Direito Comercial, Direito do Trabalho e Mercado de Capitais, tendo ainda demonstrado os seus conhecimentos em outras searas do Direito, quando transferido para o Curso de Direito, lotado no Departamento de Direito Privado, até a sua aposentadoria em março de 1991. Recebeu a láurea de “Professor Emérito da UFRN” em 17 de dezembro de 1997.
Sua vida é pontilhada de atividades diversificadas, pois teve papel de relevo na radiofonia potiguar (Diretor da Rádio Poti, ao tempo em que, ainda, Rádio Educadora de Natal), não sem antes, nos idos dos anos 40, integrar, como músico, a Orquestra de Salão daquela rádio e o Quinteto “Alberto Maranhão”. Depois, como jornalista. Passagem pelo teatro amador. Mas não vou tirar dos leitores o prazer de ler, por inteiro o seu livro, recheado de lições do bom viver e também de pedaços da história da nossa cidade. Tentações para a vida militar (Colégio Militar de Fortaleza) ao ver passar o filho do Major Antunes, com sua farda: calça vermelha com uma túnica azul e até a religiosa, sobre o que revela, na condição de coroinha respondendo a liturgia celebrada em latim, conduzindo o turíbulo no séquito após a catequese das Professoras Beatriz Cortez e Maria Citaro da Costa, que o levou à Primeira Eucaristia, tornando-se sineiro de missa de 7º dia pelo que, confessa, recebeu a primeira remuneração de sua vida. A vocação não foi longe, embora continue fervoroso cristão. Ao relatar esse fato, conclui que “essa não era a minha vocação, e assim Deus não me convocou para o seu ministério. Certa vez, quando falava a alunos concluintes do Pré, no Colégio Marista, sobre as vocações, fiz referência a esse fato para concluir: a Igreja deve ter perdido um grande padre, mas minha mulher ganhou um grande marido. Sem a menor dúvida, responderiam os anjos!”
A propósito de D. Helenita, a sua presença é uma constante em todos os momentos de sua vida e a ela dedica incontáveis registros da sua história e a sua primeira composição “Sozinho neste mundo” a quem dedica com a afirmação de ter sido a primeira e única namorada.
Nas lides advocatícias, estagiou com o famoso causídico Hélio Mamede de Freitas Galvão e chegou a chefiar a Ordem dos Advogados, Seção do Rio Grande do Norte, num pleito memorável, que marcou a transição da velha Instituição para os novos tempos, substituindo o Dr. Claudionor Telógio de Andrade após 20 anos de presidência. Sua gestão foi marcante em todos os sentidos, inclusive o da transferência do prédio acanhado da Rua da Conceição para a sede do antigo Tribunal de Justiça, onde ainda permanece nos dias atuais. Ali permaneceu por 8 anos consecutivos (01/02/69 a 01/02/77).
(texto do Professor Carlos Roberto de Miranda Gomes, baseado em saudação oficial em nome da Universidade Potiguar, por ocasião da Semana Jurídica de 2005)

02/11/2019


MACAÍBA EM ALVOROÇO

Valério Mesquita*

O juiz Cícero Martins de Macêdo Filho é meu amigo desde os anos setenta, quando residiu em Macaíba. Apreciador de “causos” do folclore local e colecionador também, pedi-lhe que me enviasse alguns do seu arquivo confidencial. Aí vão quatro deles, prá começo de conversa. Com a palavra Dr. Macêdo.
01) Um amigo da juventude e da boemia de então, cujo nome não vou declinar por razões pessoais, estava perdidamente apaixonado por uma bela moça, evangélica, recatada e pura, para quem desejava fazer uma serenata. Programada a serenata, chamou a mim e outros colegas, e tivemos a idéia de chamar para cantar e tocar o nosso amigo Luiz Marcos Damasceno, o popular Mosquito, excelente cantor e violonista. Duas da manhã e várias garrafas depois, chegamos à casa da jovem, no centro da cidade. No mais absoluto silêncio, nosso amigo pediu baixinho para Mosquito cantar uma canção de amor. Violão em punho, o vozeirão de Mosquito soou na madrugada os seguintes versos: “Boneca de trapo/ Pedaços da vida/ Que vive perdida/ No mundo a vagar.” A serenata terminou ali mesmo.
02) Meu amigo de fé e irmão camarada, Romeu Augusto, era uma figura extraordinária. Adorava fazer “presepadas”. Íamos a tudo quanto era festa e forró. Certa feita, fomos a uma festa em Ielmo Marinho. Baile rolando, Romeu tira uma garota para dançar. Música lenta, o “mago” começa a apertar a menina. Aperta, aperta, e de repente ela empurra Romeu e sai do salão. Quando olhei estava ele de braços abertos, todo lânguido, dizendo: “Chegue minha filha, chegue, eu tava quase gozando!”
03) Francisco Paulino da Silva, o popular Xixico, era uma das figuras mais espetaculares que conheci. Amigo de todas as horas, sempre foi um leal (e bota leal nisso!) eleitor da família Mesquita. Na década de 70, estava em São Paulo, onde trabalhava e para onde tinha transferido o seu título de eleitor. Era dia de eleição e nosso amigo, triste por estar longe de Macaíba e não poder votar na família amiga, resolveu não ir às urnas e foi passear pelas ruas de São Paulo. Foi quando encontrou no chão um santinho de propaganda de um candidato cujo nome era “Professor Mesquita”. Não teve dúvida. Votou no cara só pelo nome Mesquita. Guardando o santinho da propaganda. Isso é que era lealdade!.
04) José Alcides Lucena era uma figura impagável. Morava na rua Teodomiro Garcia, quase no centro da cidade. Notório contador de piadas e portador de hemorróidas crônicas, certa vez me contou o seguinte: Estava com uma crise aguda. De madrugada, sem conseguir dormir com as dores e o incômodo na região anal, procurou em casa um remédio que costumava usar. Não tinha. Foi no armário do banheiro e encontrou um pote de Iodex, remédio usado para contusões e que arde profundamente. Não teve dúvida: pegou um punhado e aplicou na região já esfoliada. Curioso, perguntei: “Zé, e aí, passou?” E ele: “Rapaz, passar passou, mas só depois que cheguei na Lagoa das Pedras, da carreira que dei!” A Lagoa das Pedras ficava a uns cinco quilômetros da casa do grande Zé de Alcides, como o chamávamos.
(*) Escritor.

31/10/2019


FINADOS

Valério Mesquita*

Algo de especial na ordem do mundo são os mortos. O maior segredo da vida é a morte. Pode vir com naturalidade nos lábios de uma criança ou escondida nas incertezas da aventura humana. O elemento essencial segue aquele princípio aristotélico de que “tudo deve ter um começo, um meio e um fim”. Qualquer travessia neste mundo não é impune. Da morte não jazem apenas destroços, choros, lamentos, que incomodam a alma. Até porque é mistério incomunicável de Deus. No livro das memórias os falecidos podem ser esquecidos mas nunca os seus nomes. Meus olhos têm a fome da saudade. Porque na epifania eles serão lembrados, mesmo em andrajos saídos das urnas escuras do sono demente.
Em Macaíba, o velho cemitério de São Miguel, é o guardião triste da população e da anistia dos pecados. Lá sempre visito e revisito os meus mortos, parentes e amigos. Pelas alamedas leio as lápides, principalmente as antiquadas, para revolver na mente os vultos ancestrais habitando a cidade. Restituem-me as casas senhoriais, os hábitos, as roupas, os folguedos, as festas, tudo lírico, romântico, calmo e sem pressa. Auta de Souza tecendo versos ali perto do rio Jundiaí. Henrique Castriciano de fraque e gravata borboleta, à passos largos caminhando em direção ao cais para não perder a lancha com destino a Natal. Calçadas e ruas atravessadas pelas figuras solenes de Tavares de Lyra, João Chaves, Alberto Maranhão e Augusto Severo. As mulheres fortes, matronas, espartanas, Senhorinha de Manoel Amaro, Marocas e Joaninha, Ana Olindina, Cacilda Mesquita, Arcelina Fernandes, Nazaré Madruga, Teresa Gomes, Luiza e Sofia Curcio, Belita Ribeiro, Zebina Alecrim e tantas e tantas outras, que vêm como fantasmas bondosos.
Sim, o cemitério é um universo multifário de loucos e de líricos, de ricos e pobres, de santos e boêmios, de todos eles importam apenas as passadas perfórmances, na alegria ou na dor, no esporte ou no carnaval. Ah, os velhos atletas do campo santo: Passarinho, Caíco, Paulo Preto, Aguinaldo, Barbosinha, Loreto e muitos outros que ainda me fazem ouvir os gritos do último gol. Os carnavalescos Zé Batata, José Ludovico, José Jeep, Ailton Feitosa, jaziam na fria lousa do esquecimento sem ruídos de cuíca e tamborim. Vendo a morte assim tão perto é inevitável a ressurreição de lembranças, das marcas e dos passos que se foram. Dia de finados é seminário de desaparecidos, procissão de relembranças, obituário de fantasmas camaradas.
Finalmente cheguei ao túmulo dos meus pais, tios, tias, avós, irmão e filho. Algo esquisito percorreu-me o corpo. Todo aquele que é sensível, emocional, capta sinais. Ali em frente dormia os restos de minha mãe, a última a ser ali sepultada. Senti imensa e incontrolável comoção. Ao redor, todos cumpriam o mesmo ritual, a mesma liturgia, que só vai acabar com o mundo. Não somente preces, nada mais, restam aos mortos. Não apenas a solidão, inexprimível, incurável e eterna. O dia de finados, hoje, é mais para advertir aos vivos do que para lembrar os mortos. Se cada um que visitasse o cemitério repetisse a frase que “eu serei você amanhã”, o mundo seria melhor. Bem melhor. De volta à rua da Cruz, o último olhar para a casa de Joanete Moura como se ainda a ouvisse sentenciar sobre o toque plangente de finados vindo do sino da Matriz tangendo um enterro para o cemitério: “Quem terá sido o triste da pancada do sino?”.
 (*) Escritor.

30/10/2019


A hora da prisão

Já defendi aqui, mais de uma vez, no âmbito do nosso processo e direito penal, por não enxergar ofensa ao princípio constitucional da presunção da inocência, o início da execução da pena imposta após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau.
Eu não mudei de opinião, digo logo.
Continuo achando que o princípio da inocência é muito mitigado com a sentença penal condenatória e, com a confirmação desta em segundo grau, ele deixa mesmo de existir. Fio-me no próprio texto constitucional que, no seu art. 5º, inciso LVII, aduz “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, chamando a atenção para o conceito/termo “sentença”, que, como sabemos, é pronunciamento por meio do qual o juiz de primeiro grau põe fim à fase cognitiva do procedimento penal em sua jurisdição. A Constituição Federal não fala em trânsito em julgado de “acórdão”, que é o julgamento colegiado proferido pelos tribunais. Ora, a sentença “transita em julgado” quando decidida sua apelação em segundo grau. O acórdão aí proferido é que ainda poderá ser objeto de recurso (especial e/ou extraordinário). Assim, pelo próprio texto constitucional, quando transitada em julgado a sentença, com a decisão confirmatória em segundo grau, temos uma verdadeira presunção de culpabilidade.
O argumento de se evitar dano irreparável à liberdade do cidadão também não me é intransponível. É claro que muitos, sobretudo os réus em iminência de prisão e os seus advogados, com base nesse argumento, se levantarão – legitimamente, frise-se – contra o que digo aqui. Entretanto, afirmo: para evitar dano irreparável à liberdade do cidadão e equívocos de outra sorte, existirão as medidas cautelares (em recurso especial e em recurso extraordinário) e, sobretudo, o habeas corpus, que é o instrumento por excelência para esse fim. E estes, medidas cautelares e habeas corpus, deverão ser julgados com total prioridade.
Rezando para não parecer populista – tenho verdadeira repulsa ao populismo judicial –, penso que, afastada qualquer inconstitucionalidade na execução da pena condenatória após a confirmação em segundo grau, estamos diante de uma questão de opção. No Brasil de hoje, um processo penal comum pode percorrer, via recursos variados, quatro graus de jurisdição: juiz de primeiro grau, tribunal de apelação, Superior Tribunal de Justiça e mesmo o Supremo Tribunal Federal. Isso sobrecarrega o Judiciário. Torna morosa a Justiça, eternizando os litígios penais, praticamente impedindo a execução da pena reiteradamente imposta, que fica sendo postergada num processo quase sem fim. Pelo que sei, em país nenhum do mundo, depois de cumprido o duplo grau de jurisdição, com a decisão condenatória do tribunal de apelação, a execução da condenação fica suspensa, “pairando no ar”, aguardando tanto tempo pela confirmação da sua Corte Suprema. É isso que queremos manter no Brasil?
Eu sei que o Supremo está decidindo, pela “enésima” vez, essa questão. Já foi e voltou, na sua jurisprudência, algumas vezes, como até já mostrei aqui em outra oportunidade. E isso é péssimo. Mas respeitarei, como sempre respeitei, a nova orientação do Supremo Tribunal Federal. Antes de mais nada, não tenho, nem espero nunca ter, a pretensão de ser dono da verdade. E também respeito essa instituição contramajoritária e pilar fundamental do nosso estado democrático de direito (e aqui friso a expressão “de direito”).
Para falar a verdade, eu acho que o Supremo Tribunal Federal, se deseja proteger esse direito fundamental de todos nós, que é a liberdade, deveria, sim, preocupar-se com o uso abusivo das prisões provisórias. As temporárias, que tomaram o lugar das conduções coercitivas, uma vez proibidas estas pelo próprio STF, contornando os juízes, abusivamente, a decisão do Tribunal. E as preventivas – as longuíssimas prisões preventivas, de meses ou anos, sem julgamento –, que, somadas ao sufocamento das famílias dos investigados, são utilizadas, muitas vezes, também abusivamente, apenas para forçar uma colaboração premiada (“nas torturas toda carne se trai”, já dizia o nosso Zé Ramalho). A prisão preventiva, entre nós, está virando cumprimento antecipado da pena. E acho que, vedada a execução da pena após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau, a coisa pode até piorar. Tornar-se-ão mais frequentes as prisões preventivas, contornando-se indevidamente a decisão do Supremo Tribunal Federal (lembrem-se do que aconteceu com a proibição da condução coercitiva), para antecipar o cumprimento de uma suposta pena que só viria a ser executada Deus sabe lá quando. Isso pode até satisfazer o desejo de justiçamento das redes sociais. Mas é isso o que queremos? Uma “justiça” sem sequer condenação? Uma “justiça” populista? Isso é mais do que péssimo!


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP