26/10/2019


BARALHO E TAVOLAGEM

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

Macaíba possuiu muitas casas de jogos. Da proibida roletagem ao jogo de baralho. Esse último pontifica até os dias de hoje, em pequenas casas freqüentadas por modestos aficcionados, principalmente nas travessas que dão acesso a Rua Dr. Francisco da Cruz (Cinco Bocas). O “jogo de bicho”, por exemplo, está representado por Cabecinha e Pirralha, remanescentes de antigos cambistas como Zé Leiteiro, Lupicinio Araújo, José Solon, Pedro Pixilinga, entre outros. Mas, a banca freqüentada pelos “endinheirados” de Macaíba dos anos cinqüenta aos oitenta era a de Manoel Samuel de Araújo, localizada à rua João Pessoa onde residiu Jorge Leite da Costa, proprietário de um bar (hoje Panificadora Industrial do comerciante José Nilson). Nesse local também funcionou uma importante “casa de jogo de tavolagem e baralho”, habitada por políticos, comerciantes, funcionários públicos e até Delegados de Policia. Era uma casa globalizada de ansiosos poliglotas.
A de Samuel foi a que mais durou sem esquecer a primeira que operava nos fundos do antigo bar de Zé Distinto, o famoso Zé Fradinha. A casa de jogo do Samuca, figura simpática e respeitada, era uma verdadeira Arca de Noé. Lá “baixaram” as mais polivalentes personalidades que buscavam no carteado os momentos de lazer e de ilusão que a mística do baralho oferecia sem nunca enriquecer ninguém. Leonel Mesquita, Alfredo Mesquita, Magno da Fonseca Tinôco, João Justino Filho, Luiz Tomaz do Nascimento, Severino Tavares, Pedro Cascudo, Omar Vilar de Queiroz, Francisco Falcão Freire, Chicaca e Tião (marchantes), José Álvares, Pedro Álvares (Pedroca), Genésio Rocha, Pedro Luis de Araújo (Mestre Pedro), Sinval Azevedo (gerente da Nóbrega & Dantas), Francisco Pereira dos Santos (Chico Cobra), Belchior, todos servidos pelos garçons Luis Bicho Feio e Tota Passarinho.
Essa atividade refletia uma situação econômica e social que Macaíba viveu em mais de três décadas. Depois, houve um declínio. Samuel adoeceu e quando veio a falecer com ele viajou todo aquele mundo de diversão, de encontros e desencontros. Até porque, antes, foram desaparecendo paulatinamente os seus fiéis habitantes, o que enfraquecia sobremaneira o quadro social da casa, o fluxo e o contrafluxo dos investimentos da sorte.
Na memória guardo a fisionomia e os gestos de todos os náufragos desse rio que passou pelos olhos de minha vida de menino e adolescente. Até alguns fatos hilários guardei como relicário de espertezas, cacoetes e sortilégios dos seus humaníssimos protagonistas.

(*) Escritor.

25/10/2019


O vaqueiro Chicão
Tomislav R. Femenick – Jornalista e historiador
           
Nas minhas memórias há duas figuras de vaqueiros. Vaqueiros daquele de antigamente, que usavam chapéu, parapeito, gibão, perneiras, meia luva e alpercatas de couro; não por enfeite, mas por necessidade de trabalho. Os dois eram Francisco. O primeiro era seu Chico Bem, o vaqueiro de meu avô na Fazenda Rio Morto em Mossoró. Um dia, por causa de um pouco mais ou nada, brigaram e acabaram com a amizade; mais eu continuei seu amigo. Homem danado de tinhoso, de muito poucas palavras, caladão mesmo. O outro era Chicão, lá do Canto Grande, no Município de Alto do Rodrigues, na margem direita do Rio Assu. Era o contrário do seu xará mossoroense. Soube de muitas desavenças em que ele se envolveu, mas nunca soube que tivesse apartado a amizade com seus desafetos. Sorridente por tudo, conversador inveterado, sorria mais e conversava mais quando acompanhado por um gole de pinga ou de conhaque ou, ainda, de uns copos de cerveja; que dizia não gostar, mas tomava todos.
            Ambos usavam a vestimenta de vaqueiro para trabalhar, principalmente quando iam campear gado, enfrentando a caatinga ou mesmo o mato ralo do semiárido, com seus espinhos e surpresas. Essa verdadeira couraça é feita de couro curtido, sem pelo, flexível, macio e de uma cor entre marrom claro e vermelho escuro.  O gibão, ou jaleco, era enfeitado com pespontos e fechado com cordões de couro. O parapeito, preso no pescoço por uma tira de couro, era de um couro mais fino, porém resistente. As perneiras, presas na cintura também por tiras de couro, formavam uma espécie de calça, que ia da virilha até os pés. Nas mãos usavam luvas, sem dedos e sem cobertura nas palmas. Nos pés, alpercatas fechadas na frente. Porém o mais importante era o chapéu, feito de couro forte, que os protegia dos galhos dos “pés de pau” e do sol. Para completar o aparato, tinham esporas nos pés e uma chibata na mão.
Eu fui mais amigo do Chicão, pois tínhamos idade mais próxima; ele era mais velho cinco ou dez anos. Sou até padrinho de um de seus filhos, padrinho de fogueira de São João, que no seu dizer vale mais. A sua fazenda era vizinha à do meu sogro, com quem tinha uma pendenga por causa da localização de uma cerca e alguns palmos de terra. Mas conversavam, trocavam ideias sobre o inverno, sobre a data certa para fazer o plantio ou a colheita de algodão. Tudo só como preâmbulo para fazer negócio com gado. Nesses dias as discussões eram brabas, com xingamento e acusações de roubo feitas por ambas as partes, tudo dito cara-a-cara e tudo esquecido com uma xícara de café trazida pela velha Berréia, café feito na hora; nem requentado, nem de garrafa térmica. Vezes havia em que demoravam horas ou dias nas idas e vindas das negociações. Terminadas os ajustes, Chicão ia à sua casa e, invariavelmente, trazia um presente para seu vizinho: um queijo de coalho. Era quase que um ritual, estabelecido desde muito tempo antes de que eu os conhecesse.
            A vida de Chicão era mais negociar que criar gado. E não trabalhava para ninguém, só para ele mesmo. Saia de casa ia com seus auxiliares para Carnaubais, Ipanguaçu, Upanema, Afonso Bezerra, Angicos, Santana do Mato ou outras direções, para comprar algumas cabeças de gado aos seus fregueses de sempre. Gado que vendia a outros fregueses ou diretamente aos matadouros de algumas cidades. Fazia a viagem de ida e de volta a cavalo. Levava dias, semanas, mas, dizia, tinha o prazer de na volta vir tangendo a boiada pelas estradas, veredas e caminhos que somente ele conhecia. Isso tudo para fazer a viagem menor, para não maltratar os animais. Às vezes tinha de percorrer trilhas na caatinga; mesmo assim dificilmente perdia alguma rês. Só tinha receio de se encontrar com caravanas de ciganos.
Diziam que, certa vez, um cigano tentou atirar em Chicão. Ele nunca tinha me falado desse caso. Uma noite estávamos jogando conversa fora e eu lhe perguntei se a história era verdadeira. Ele deu uma daquelas suas risadinhas e mudou de assunto. Chamou minha atenção para o perfume suave que as plantas de aguapé exalavam de uma lagoa próxima e a conversa andou por outros caminhos. Quando estava de saída, voltou-se para mim e disse: “Sobre a sua pergunta. Eu estou vivo; mas não garanto que ele esteja”.

Tribuna do Norte. Natal, 24 out. 2019 

22/10/2019



21/10/2019


A partir de quando?

Dia desses, no Habeas Corpus (HC) 166373, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria (7 x 4), que, em ações penais com réus colaboradores e delatados, é direito destes apresentarem suas alegações finais depois dos réus que firmaram acordo de colaboração. Venceu o entendimento de que, com os interesses conflitantes, apenas a concessão de prazos sucessivos, possibilitando que os delatados falem por último, garante o direito fundamental da ampla defesa e do contraditório.
Tudo bem. Pensando direitinho, isso parece ser o correto.
Entretanto, não se havia pensado nisso, nem mesmo no STF, até bem pouco tempo. E, durante alguns anos, esse procedimento, de prazos sucessivos para as alegações finais, não era o adotado nos juízos e tribunais do país afora.
E aí surgiu um outro problema, gravíssimo, aliás: essa decisão no Habeas Corpus (HC) 166373 pode ter repercussão em diversos processos concluídos ou em tramitação pelo país, agora sujeitos a uma potencial nulidade. Assim, os ministros terão de apresentar, para garantir um mínimo de segurança jurídica, uma tese/solução para orientar as outras instâncias judiciais eventualmente envolvidas.
A solução, espera-se, passará por algum tipo de aplicação prospectiva da decisão que anunciou a nova regra. Numa aplicação prospectiva clássica, o novo precedente, decidindo/disciplinando o caso em julgamento, passará a disciplinar apenas os fatos ocorridos depois do seu estabelecimento. Não retroage para os fatos já ocorridos e os casos já julgados. Tem efeitos apenas ex nunc, como se diz.
A razão da existência da aplicação prospectiva está na necessidade de manutenção da confiança nos precedentes judiciais anteriormente estabelecidos, pois as pessoas e órgãos do Estado agem – ou, pelo menos, deveriam agir – com base e em confiança nas regras até então existentes, incluindo-se as regras elaboradas pelos juízes, em especial aqueles da sua Corte Suprema.
No processo penal, como é o caso do dilema que o STF enfrenta agora, isso é bem sensível, claro. Temos muitos direitos fundamentais em jogo, em especial a liberdade. Mas há boas justificativas para a aplicação prospectiva do novo precedente nessa área do direito. Victoria Sesma, em “El precedente en el common law” (editora Civitas, 1995), levando em consideração a prática judicial dos Estados Unidos da América, oferece-nos pelo menos duas boas razões para aplicar um novo precedente revogador apenas prospectivamente, derivadas da ideia de manutenção da confiança nas decisões judiciais: “a) a justificativa mais usada tem sido a confiança nas decisões judiciais. (...). Um tipo de confiança diferente tem sido alegado por parte de policiais e membros do Ministério Público quando enfrentaram um tribunal que coloca em xeque os procedimentos que se devem seguir em uma investigação criminal. Não é justo, dizem, penalizar a persecução por errar no cumprimento de regras que não tinham sido estabelecidas antes da investigação acontecer. A Corte Suprema dos EUA aceitou este ponto de vista como um dos fundamentos para limitar o efeito de Miranda v. Arizona 384 U.S. 436 (1966); b) uma segunda justificativa assinala que o que motiva o tribunal a revogar um precedente é o desejo de pôr em prática uma nova política, mas uma política que não necessita ter efeito retroativo. Em Mapp v. Ohio, a Corte Suprema dos EUA decidiu que a prova descoberta em um determinado procedimento considerado ilegal não podia ser utilizada em juízo. Em Linkletter v. Walker 381 U.S. 618 (1965), o tribunal decidiu que a regra Mapp era só prospectiva. Disse que a nova regra foi proposta para dissuadir procedimentos ilegais, e que era demasiado tarde para dissuadir aqueles procedimentos que já tinham acontecido. Portanto, não podia ganhar-se nada dando a Mapp efeito retroativo”.
Acho que a coisa vai caminhar por aí – algum tipo de aplicação prospectiva – para a decisão proferida no Habeas Corpus (HC) 166373. Até porque, como disse o Ministro Luiz Fux dia desses, segundo publicação do ConJur de 16 de setembro de 2019, o STF “tem muita preocupação com a segurança jurídica. A segurança jurídica, por vezes, leva o Supremo a modular suas decisões. Quer dizer, as decisões passam a valer de um determinado momento para frente, para não nulificar tudo o que já foi praticado”. Ainda acredito que ele está certo.
Apenas, talvez, com algumas exceções retroativas para corrigir prejuízos efetivamente demonstrados, em processos já julgados, como aquelas sugeridas pelo Ministro Presidente Dias Toffoli: “1) em todos os procedimentos penais é direito do acusado delatado apresentar as alegações finais após o acusado delator que, nos termos da Lei 12.850, de 2013, tenha celebrado acordo de colaboração premiada devidamente homologado, sob pena de nulidade processual, desde que arguido até a fase do artigo 403 do CPP ou o equivalente na legislação especial, e reiterado nas fases recursais subsequentes; 2) para os processos já sentenciados, é necessária ainda a demonstração do prejuízo, que deverá ser aferida no caso concreto pelas instâncias competentes” (site do Conjur de 2 de outubro de 2019).
Bom, aguardemos o nosso Supremo.


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

14/10/2019


A cana de Graça (II)

Lemos Britto (1886-1963), em seu “O crime e os criminosos na literatura brasileira” (Livraria José Olympio Editora, 1946), disse: “copiando a vida, em todos os seus aspectos, e em todos os seus meandros, por mais recônditos, os romancistas e novelistas não podiam esquecer os cárceres onde os que transgridem as leis penais são recolhidos para cumprimento de suas penas”.
Graciliano Ramos (1892-1953) não transgrediu lei penal alguma, pelo menos não para os fins da prisão, injusta e política, que lhe foi infligida, em 1936, pelo Governo de Getúlio Vargas (1882-1954). Embora um dos maiores escritores do país – lembremos que ele já havia publicado “Caetés” (1933) e “São Bernardo” (1934) –, Graciliano foi simplesmente jogado entre criminosos comuns, entre assassinos, ladrões e estupradores, sem motivo e sem culpa, jamais ouvido ou formalmente acusado, até porque não haveria crime que lhe fosse possível, honestamente, atribuir. Teve a cabeça raspada, como qualquer gatuno, e foi submetido às demais humilhações por que passavam os condenados de então (a coisa parece não haver mudado muito de lá para cá). Tudo feito propositalmente. E se algo de positivo pode ser retirado dessa barbaridade com o “Velho Graça”, a única coisa possível, foram as suas “Memórias do Cárcere”, publicadas, já postumamente, em 1953.
O livro – refiro-me às “Memórias do Cárcere” –, portanto, é um “depoimento”. Conta a história de uma prisão arbitrária, as aventuras e os dramas do prisioneiro e de seus companheiros, pelos presídios do país e, sobretudo, descreve um período da nossa história. E ninguém poderia prestar esse depoimento tão bem quanto aquele que foi ao mesmo tempo acusado, testemunha e, sobretudo, vítima dessa tremenda arbitrariedade jurídico-política. Muito embora tenha Graciliano escrito – e, sobretudo, publicado – as suas “Memórias” anos após o acontecido, quando até já declinava fisicamente (ele faleceu em 1953, ano da publicação do livro), vítima das sobrecargas do tempo e da doença (um câncer), das dores e das amarguras da vida.
O livro também é um “libelo”. E, dada a injustiça praticada, não poderia deixar de sê-lo, como bem lembra Nélson Werneck Sodré (1911-1999), em prefácio à edição de “Memórias do Cárcere” que possuo (publicação da Record e da Livraria Martins Editora, de 1975, em dois volumes). Um “J'accuse” à brasileira e em causa própria. De toda sorte, nesse sentido, ganhamos “com a objetividade, com a clareza, com a minúcia e com a exatidão, – porque, sendo uma acusação, não pretendeu jamais ser neutro ou dar, indiscriminadamente, relevo a alguma coisa que não o merecesse”.
Ademais – e é o mesmo Nélson Werneck Sodré que anota isso –, “só o mestre de Angústia [romance publicado por Graciliano em 1936, quando achava-se preso pelo Governo Vargas] poderia realizar a tarefa com a grandeza necessária”. E, aqui, aproveito a deixa para fazer a relação entre Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e Graciliano Ramos, como, de resto, fiz no artigo anterior, sobre Oscar Wilde (1854-1900).
Na estória do triângulo amoroso entre o ressentido Luís da Silva, o rico Julião Tavares e a disputada Marina, de viés existencialista, trabalhado por meio de um “fluxo de consciência” joyciano, há mesmo algo, talvez muito, de Dostoiévski e de “Crime e Castigo” (1866). Em especial, as angústias, os arrependimentos e o medo (de ser pego), sentimentos que o crime praticado desperta no seu autor (no caso, o Luís da Silva), que estão presentes no dois romances. Com a diferença de que, em “Crime e Castigo”, o delito é o ponto de partida para a trama; no livro de Graciliano, o crime é o seu quase “finale”, numa mistura dúbia de realização pessoal com angústia que dá título à obra. Graciliano leu “Crime e Castigo”, isso é certo. Era um apreciador da literatura russa e de Dostoiévski em particular. Mas, em vida, relutou em aceitar as comparações entre a sua “Angústia” e “Crime e Castigo”. Não achava seu livro à altura da obra-prima russa. Parte modéstia, parte honesta autocrítica.
E o mais importante: quem lê ou ouve falar de “Memórias do Cárcere” certamente se lembrará de Dostoiévski e de suas “Recordações (ou Memórias) da Casa dos Mortos”, de 1862. Aqui, sem dúvida, no gênero dos “romances prisionais” (se é que esse gênero existe), Graciliano Ramos foi o nosso Dostoiévski. E, como anota Nélson Werneck Sodré, ele “realizou a tarefa como desejávamos todos: sua história aparece como um dos grandes livros brasileiros, talvez o maior. Não se surpreendam, – amanhã, quando a vida de hoje estiver esquecida, esta obra nos representará. Será, para os brasileiros que vierem depois de nós, muito mais do que Os Sertões, muito mais do que o melhor Machado de Assis [talvez tenhamos um certo exagero aqui, vá lá]. E foi por isso que escrevemos que Graciliano honrou o seu tempo”.
Bom, dito isso, só nos resta agora ler ou reler as “Memórias do Cárcere”. Mesmo que com toda a angústia do mundo.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

11/10/2019



REVISITANDO UM MITO

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

A simplicidade de Oscar Niemeyer era contagiante. Fez-me pegar a caneta como eu gosto e me habituei e passar a escrever ao sabor da emoção. Ateu, mas tão socialista na oferta como Francisco de Assis. Agnóstico, mas tão sábio quanto Agostinho. Reconhecido mundialmente no traço e no poder do concreto quanto Paulo nas planetárias epistolas: lógico e conciso. Tão comunista quanto cristão na concepção arquitetônica de igrejas e capelas pelo Brasil afora. Humilde, acessível e carismático tanto quanto João Paulo II na arte de conquistar o povo de Deus pelo olhar de plenitude e fragilidade. Niemeyer foi maior que qualquer rei do rock, do rap, dos ricaços de qualquer conglomerado empresarial neste país. Isso tudo porque foi um simples, que viveu, amou, se divertiu e se deu a respeito. Nunca ninguém leu o seu nome envolvido em falcatruas em meio a tantas criações e obras em governos mil.
Limpo e feliz, criativo e dedicado, suavizou o concreto e até a morte, nunca dela falando, mesmo a vida se esvaindo. Inspirou-se no mestre Le Corbusier. Brasília, de parceria com Lúcio Costa, ele foi o cara e o coroa quando expirou aos 104 anos. Postava- se tímido, fumante (vejam só), gostava do romance, mas na arquitetura era instintivo. Falava em Deus, mas não acreditava em religião. Já li esse fato em entrevista que concedeu. Claro que foi maior que sua arte. Falava em céu, firmamento, estrelas, tudo criado pelo Supremo Arquiteto do Universo, enquanto ele era “o maior arquiteto do Brasil e um dos melhores do mundo”. Neste último conceito o seu estilo foi inimitável, único e incomparável.
Oscar Niemeyer possuía o dom de viver, daí a longevidade: sem ostensividade, vaidade ou vã glória. Laureado em todo o mundo, mas avesso às homenagens. Quando se sentiu ameaçado no regime militar autoexilou-se em Paris. Não conspirou, não ameaçou nem foi terrorista. Apenas, confiava no comunismo como na sua arquitetura. Ficará conhecido e perenizado pela arte e não pela crença política. Mesmo assim, dava-se a respeito, mais do que muitos que a professaram. Sua morte foi lamentada em todo mundo. Nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Israel, Espanha entre outros países, ele deixou um legado de obras cativantes, admiradas pela tipicidade e a “curva livre e sensual das suas linhas”.
Mas, a chama inapagável de Niemeyer não se notabilizou tão somente no milagre que esculpiu com a linha reta embelezando as curvas de tantas edificações. Embora centenas, todavia, dezenas de suas criações ao vivo ou a cores pela TV e fotos eu já admirava. Fui, exatamente, me emocionar com a simplicidade cósmica desse personagem. Famoso, rico honestamente – frise-se – no entanto, pacífico, modesto, recatado, ciente de sua transitoriedade. Enfim, um cristão sem reza, oração, igreja ou templo. Um pintor de arcos voltaicos, de auroras boreais, de crepúsculos planaltinos, de galáxias estelares, com um pincel singelo, a pobreza de um proletário, revolucionário, vidente, vermelho mas suave no canto e na voz. Uma personalidade marcante para não ser esquecida que tinha no crayon o sentimento do mundo, apesar da “vida ser um sopro”, como dizia.

(*) Escritor

REVISITANDO UM MITO

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

A simplicidade de Oscar Niemeyer era contagiante. Fez-me pegar a caneta como eu gosto e me habituei e passar a escrever ao sabor da emoção. Ateu, mas tão socialista na oferta como Francisco de Assis. Agnóstico, mas tão sábio quanto Agostinho. Reconhecido mundialmente no traço e no poder do concreto quanto Paulo nas planetárias epistolas: lógico e conciso. Tão comunista quanto cristão na concepção arquitetônica de igrejas e capelas pelo Brasil afora. Humilde, acessível e carismático tanto quanto João Paulo II na arte de conquistar o povo de Deus pelo olhar de plenitude e fragilidade. Niemeyer foi maior que qualquer rei do rock, do rap, dos ricaços de qualquer conglomerado empresarial neste país. Isso tudo porque foi um simples, que viveu, amou, se divertiu e se deu a respeito. Nunca ninguém leu o seu nome envolvido em falcatruas em meio a tantas criações e obras em governos mil.
Limpo e feliz, criativo e dedicado, suavizou o concreto e até a morte, nunca dela falando, mesmo a vida se esvaindo. Inspirou-se no mestre Le Corbusier. Brasília, de parceria com Lúcio Costa, ele foi o cara e o coroa quando expirou aos 104 anos. Postava- se tímido, fumante (vejam só), gostava do romance, mas na arquitetura era instintivo. Falava em Deus, mas não acreditava em religião. Já li esse fato em entrevista que concedeu. Claro que foi maior que sua arte. Falava em céu, firmamento, estrelas, tudo criado pelo Supremo Arquiteto do Universo, enquanto ele era “o maior arquiteto do Brasil e um dos melhores do mundo”. Neste último conceito o seu estilo foi inimitável, único e incomparável.
Oscar Niemeyer possuía o dom de viver, daí a longevidade: sem ostensividade, vaidade ou vã glória. Laureado em todo o mundo, mas avesso às homenagens. Quando se sentiu ameaçado no regime militar autoexilou-se em Paris. Não conspirou, não ameaçou nem foi terrorista. Apenas, confiava no comunismo como na sua arquitetura. Ficará conhecido e perenizado pela arte e não pela crença política. Mesmo assim, dava-se a respeito, mais do que muitos que a professaram. Sua morte foi lamentada em todo mundo. Nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Israel, Espanha entre outros países, ele deixou um legado de obras cativantes, admiradas pela tipicidade e a “curva livre e sensual das suas linhas”.
Mas, a chama inapagável de Niemeyer não se notabilizou tão somente no milagre que esculpiu com a linha reta embelezando as curvas de tantas edificações. Embora centenas, todavia, dezenas de suas criações ao vivo ou a cores pela TV e fotos eu já admirava. Fui, exatamente, me emocionar com a simplicidade cósmica desse personagem. Famoso, rico honestamente – frise-se – no entanto, pacífico, modesto, recatado, ciente de sua transitoriedade. Enfim, um cristão sem reza, oração, igreja ou templo. Um pintor de arcos voltaicos, de auroras boreais, de crepúsculos planaltinos, de galáxias estelares, com um pincel singelo, a pobreza de um proletário, revolucionário, vidente, vermelho mas suave no canto e na voz. Uma personalidade marcante para não ser esquecida que tinha no crayon o sentimento do mundo, apesar da “vida ser um sopro”, como dizia.

(*) Escritor