08/11/2018


A ficção jurídica (I)
Como já disse aqui certa vez, a questão do gênero ou da tipologia na literatura ficcional é bastante controversa: antes de mais nada, as grandes obras-primas normalmente não se conformam às regras convencionadas; e muitos críticos literários sequer reconhecem a existência desse conceito (de gênero da literatura ficcional).
Essa atitude – de aversão à classificação da literatura ficcional – tem uma explicação histórica. Segundo registra Tzvetan Todorov (1939-2017), em “Poética da Prosa” (Editora Martins Fontes, 2003), “a reflexão literária da época clássica, que se dedicava mais aos gêneros que às obras, também manifestava uma tendência punitiva: a obra era julgada ruim se não obedecesse de modo suficiente às regras do gênero. Portanto, essa crítica procurava não só descrever os gêneros mas também prescrevê-los; a classificação dos gêneros precedia a criação literária em vez de vir depois dela”. E, dos românticos e de seus descendentes, a reação para com isso foi radical: estes “recusaram-se não só a se conformar às regras dos gêneros (o que era seu direito), mas também a reconhecer a própria existência dessa noção. Por isso a teoria dos gêneros continua singularmente pouco desenvolvida até hoje”.
Para além dessa reação/preconceito, é também fato que as grandes obras da literatura muito frequentemente refogem a uma classificação dentro de um gênero literário, a não ser em seu próprio. Como anota o mesmo Todorov, “a grande obra de certa forma cria um novo gênero, e ao mesmo tempo transgride as regras do gênero válidas até então”. E ele dá como exemplo disso a “Cartuxa de Parma” (1841), cujo gênero de seu pertencimento não seria o do “romance francês do começo do século XIX”, mas, sim, o do “romance stendhaliano”, assim criado por essa obra-prima de Henri-Marie Beyle, dito Stendhal (1783-842) e por outros romances de semelhantes contornos.
Mas embora essa seja uma atitude muito difundida – que, por honestidade intelectual, fui obrigado a citar aqui –, acho que podemos adotar uma posição diferente. Aliás, penso que atualmente existe até uma tendência em encontrar critérios seguros para, mesmo dentro de uma noção mais geral de literatura, classificar boa parte da prosa ficção em gêneros mais ou menos definidos: histórias de amor, histórias detetivescas, histórias de terror, romances históricos, “roman à thèse”, romances regionais, faroestes, ficção científica e por aí vai.
Por que não termos o gênero/categoria da “ficção jurídica”, no qual estariam inseridas obras-primas como “O mercador de Veneza” (1597), de William Shakespeare (1564-1616), “A casa soturna” (1853), de Charles Dickens (1812-1870) ou “Crime e Castigo” (1866), de Fiódor Dostoiévski (1821-1881)?
Mesmo que eu reconheça a dificuldade de comparar e agrupar livros escritos em formatos/estilos diferentes, em circunstâncias culturais distintas e com intenções bastante diversas, acho que podemos nos contentar, para os fins dessa categorização – de romances, novelas, contos ou peças de teatro como “ficção jurídica” –, com alguns bons elementos/critérios que podemos encontrar e medir nessas obras.
Adianto, desde já, alguns desses elementos (prometendo desenvolver o tema, com muitos exemplos de títulos de ficção jurídica, nos artigos das semanas vindouras). Antes de mais nada, embora tenhamos exemplos de obras cuja classificação é controversa ou que podem ser classificadas em mais de um gênero ou subgênero, acho que podemos classificar como ficção jurídica os romances, as novelas, os contos ou as peças de teatro cujos enredos tenham considerável ligação com o direito. Por exemplo, um subtipo muito característico dessa ficção (jurídica), bastante difundido nos Estados Unidos da América e no Reino Unido, são os “courtroom novels”, nos quais boa parte da estória se passa perante um aparelho de judicial em pleno funcionamento, com advogados, promotores e juízes realizando suas performances jurídicas. Outro subtipo, bastante comum também, envolve um pano de fundo filosófico, em que há uma tensão entre a falibilidade do sistema (ou da “justiça humana”) e a noção, com forte apelo no direito natural, do que é a verdadeira Justiça. Há, também, os “legal novels” de vieses históricos, baseados ou inspirados em acontecimentos reais ou mesmo em grandes eventos da história. E existem também livros que são essencialmente estórias de suspense ou mesmo “thrillers” jurídicos. No mais, de um ponto em diante, as coisas variam bastante: os enredos podem focar o réu, a vítima, o advogado brilhante, o promotor que busca incessantemente a Justiça, o juiz “justo”, o controverso instituto do júri, a defesa do meio ambiente, a corrupção ou opressão do Estado e por aí vai. Para falar a verdade, até mesmo uma obra de ficção policial ou detetivesca pode ser, em muitos casos, também classificada como ficção jurídica, pela concomitante presença de elementos desta última categoria.
Bom, o fato é que, pessoalmente, adoro conceitos, definições e classificações. Sou um conceptualista no direito, à moda da escola analítica anglo-saxã, talvez melhor representada, na história da ciência jurídica, por H. L. A. Hart (1907-1992). Mesmo quando não inteiramente precisas, as classificações, acredito, ajudam muito na compreensão das coisas.
E se acredito piamente na existência e na conveniência de uma ficção a ser classificada como “jurídica”, eu não estou sozinho nisso. Podem ter certeza.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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