Crimes econômicos (IV)
No artigo da semana passada, afirmei que a Polícia Federal, o
Ministério Público Federal e a Justiça Federal formam a linha de frente
da prevenção e, sobretudo, da repressão à prática dos crimes econômicos e
de corrupção (levando em conta, frise-se, aqueles delitos praticados
contra a União, suas autarquias e suas empresas públicas). Ao fim de
tudo, especialmente se as medidas preventivas não derem certo e for
necessário partir para a repressão, as coisas deságuam nesse tripé de
instituições.
Todavia, também ressaltei que a expansão legislativa relativa aos
crimes econômicos e à corrupção (especialmente a partir da década de
1990) e a sofisticação cada vez maior na prática desses delitos desafiam
crescentemente o papel desempenhado pelas três instituições que
tradicionalmente dividem o trabalho jurídico-penal nesta seara. E hoje
há, de fato, com papéis relevantíssimos, outras agências – que posso
qualificar como de “controle e inteligência” – também engajadas na
missão de viabilizar e otimizar a prevenção e a repressão a esse tipo de
criminalidade. A Receita Federal, o COAF, o TCU, a CGU e por aí vai.
Sem a cooperação dessas agências, o combate à criminalidade econômica e à
corrupção, hoje mais organizada do que nunca, ficaria completamente
inviabilizado.
Dentre essas agências/organizações de controle e inteligência, vou
aqui destacar duas e, sobre elas, tecer alguns comentários: a Receita
Federal do Brasil e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras –
COAF. Como Procurador da República há mais de duas décadas, é com essas
agências que tenho mais interagido, nos últimos anos, para fins de
prevenção e repressão dos tais crimes econômicos e da corrupção. Sem
falar que elas representam, a meu ver e de muitos dos meus colegas, duas
faces bem distintas de atuação e de cooperação nessa área.
A Receita Federal todos nós conhecemos. Secretaria subordinada ao
Ministério da Fazenda, ela é a encarregada da administração dos tributos
de competência da União. E se alguns não gostam dela, sobretudo na hora
de pagar os tais tributos, o certo é que ela tem um papel relevante – e
atua bem, a meu ver – na prevenção e no combate à chamada “sonegação
fiscal”, entre outras coisas. De fato, como consta do livro/guia “A
investigação e persecução penal da corrupção e dos delitos econômicos:
uma pesquisa empírica no sistema judicial federal” (publicado pela
Escola Superior do Ministério Público da União em 2016), “a qualidade
das investigações realizadas pela Receita Federal é ressaltada pelos
procuradores. A seletividade da Receita Federal, que traça critérios de
atuação segundo metas previamente discutidas e atua discricionariamente
nos casos considerados prioritários, deveria inspirar a atuação do MPF.
Assim, abdica-se daquilo que não é estabelecido nos planos de metas em
determinada área. (…). Alguns dos relatos sugerem que o MPF deveria
inspirar-se nesta forma de gerenciamento dos recursos escassos e levar a
uma ampla discussão sobre o princípio da obrigatoriedade da ação penal,
a fim de concentrar nos casos mais graves e relevantes”. Alguns
problemas existem, claro. As representações encaminhadas pela RF ao MPF
“nem sempre possibilitam a persecução penal, pois não seriam devidamente
esclarecedores da autoria dos envolvidos nas fraudes tributárias”,
assim como, em alguns casos, “a perspectiva arrecadadora dos
procedimentos não coincide com os parâmetros exigidos para o tratamento
jurídico-penal dos casos”. Mas nada que a cooperação e diálogo direto
não resolva, caso a caso em se tratando de situações de grande
relevância, ou mesmo com a incorporação de rotinas de trabalho que já
viabilizem a persecução penal. Já que temos uma delegacia da RF no Rio
Grande do Norte, fizemos isso aqui por um bom tempo. E deu certo. Não
vou citar aqui os casos porque este não é o foro adequado.
O COAF, por sua vez, não é um órgão conhecido do grande público.
Criado pela Lei nº 9.613/98 (vide o texto com a nova redação dada pela
Lei nº 12.683/2012), que dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou
ocultação de bens, direitos e valores, entre outras coisas, o COAF é uma
das instituições mais importantes no novo arranjo de prevenção e
repressão na utilização do sistema financeiro para a prática de ilícitos
econômicos e de corrupção”. Basicamente, como descrito no livro/guia
acima referido, “o Coaf trabalha da seguinte maneira: ele recebe
informações de instituições financeiras toda vez que você for a uma
instituição financeira e realizar uma transação considerada atípica; o
banco é obrigado legalmente a avisar o Coaf, e essa informação chega ao
Coaf e eles fazem um relatório. Às vezes consultam o banco de dados pra
ver se tem mais e tal, e manda para o Ministério Público. Então, a
partir daí, a partir da elaboração desse relatório da inteligência, há
uma atividade de investigação mais aprofundada”. Via de regra, os
peritos do MPF têm uma boa impressão do COAF. Já entre os Procuradores
da República a coisa não é tão positiva assim. Como órgão de
inteligência financeira e não de investigação, “as rotinas estabelecidas
para a remessa de informações ao MPF não seriam, contudo, adequadas. Os
relatórios de informação, em regra, seriam pouco esclarecedores do
ponto de vista penal”. De fato, os tais relatórios são pouco
inteligíveis para um bacharel em direito. Não sei bem qual seria a
solução para isso. Talvez dotar de poderes e treinar o COAF (e as outras
agências de controle e inteligência) para fins de realizar parte da
investigação criminal. Teríamos relatórios mais precisos para fins de
materialidade e autoria do crime em apuração, auxiliando decisivamente a
propositura da ação penal. Certamente também seria o caso de
conversarmos mais. De minha parte, confesso uma enorme dificuldade de
trabalhar com a atual metodologia do COAF, até porque, enxergando apenas
o tal relatório (em regra, é só o que eu tenho), vejo-me perdido com
aquela linguagem contábil-financeira. Com o COAF, ademais, tudo é muito
longe. Falta-nos diálogo, definitivamente.
Bom, dados esses dois exemplos, concluo enfatizando a ideia de
cooperação. E cooperação pressupõe constante diálogo. Entre a PF, o MPF e
a JF. Entre estes três atores e as muitas agências de controle e
inteligência acima referidas. Sem esta cooperação, a coisa – falo do
combate aos crimes econômicos e à corrupção – não funciona. Com esta,
fazendo uso da expertise das várias agências envolvidas, temos alguma
chance. E não podemos nos contentar com uma cooperação de caráter apenas
formal, de mera troca de ofícios e encaminhamento dos expedientes de
praxe. O diálogo deve ser institucional, mas também pessoal. O mais
próximo possível. Coisas simples ajudam muito mais que uma petição ou um
ofício cheio de “juridiquês”: encontros presenciais constantes, uso do
telefone e do whatsapp, relacionamento pessoal, linguagem simples e
uniforme são apenas alguns exemplos. Se assim não for, a nossa chance de
sucesso, que já não é lá grande coisa, diminui consideravelmente. Podem
ter certeza.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário