Os humanistas (II)
Como prometido no artigo da semana passada (e costumo cumprir
minhas promessas), hoje, para além da biografia dos mestres
“humanistas”, trataremos dos principais postulados ou orientações
propagadas pela denominada “Escola Culta de Jurisprudência”. E faremos
isso com a ajuda, aqui e ali, de Antonio Padoa Schioppa e sua “História
do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea” (edição da
WMF Martins Fontes, 2014), que, publicada originalmente em italiano
(2007), considero a melhor obra escrita sobre a temática nos últimos
anos.
Antes de mais nada, é importante lembrar que o desabrochar da
Escola Culta de Jurisprudência decorre diretamente do panorama cultural
europeu de então (séculos XV e XVI, especialmente), marcado pelo
humanismo e pelo denominado “Renascimento” e a sua paixão pela
Antiguidade Clássica, representada nas culturas grega e romana. A
redescoberta de “novos” textos gregos e romanos, o estudo dessa
literatura, dessa história, dessa filosofia, fez com que se tentasse
imitar, tanto quanto possível, toda sua arte, toda sua técnica. Isso
contaminou todas as ciências, inclusive o direito. Inicialmente na
Itália (vide o caso de Andrea Alciato) e, em seguida e principalmente,
na França, com o incomparável desenvolvimento do “mos gallicus iura
docendi” (“modo francês de ensinar o direito”).
Dentro desse contexto, Antonio Padoa Schioppa ajunta alguns
postulados da “Escola Culta de Jurisprudência”. Um dos mais importantes,
certamente o mais característico, talvez seja o viés
“histórico-filológico” do (futuramente apelidado) “modo francês de
estudar o direito”. De fato, desde os tempos de Alciato, às pesquisas de
ordem filológica do direito somou-se uma tendência à historização do
direito. Nas palavras de Schioppa: “(…) alguns importantes textos
pós-clássicos – entre os quais as Pauli Sententiae, o Édito de
Teodorico, a Collatio legum mosaicarum et romanarum, a Consultatio
veteris cuiusdam iurisconculti – foram redescobertos e editados por
Pierre Pithou e por outros estudiosos humanistas. Mas foi, sobretudo, a
orientação filológica inaugurada no século XV por Valla e Poliziano que
veio a conhecer no século XVI um desenvolvimento notável. Foram
organizadas as primeiras edições críticas do Corpus iuris, baseadas no
exame de vários manuscritos e publicadas sem o aparato da Glosa
arcusiana para que o estudo ficasse mais concentrado no texto antigo”.
Esse método histórico-filológico alcançou seu apogeu com Jacques Cujas,
que empreendeu exaustivas pesquisas nos textos dos juristas romanos
clássicos, a exemplo de Papiniano (142-212), na medida do possível com
base em fragmentos originais anteriores ao Corpus Iuris Civilis
(529-534) do Imperador Justiniano (482-565) e do seu grande jurista
Triboniano (500-547).
Some-se a isso, ainda relacionado a esse viés histórico-filológico,
uma nova atitude “crítica” dos cultos em relação à própria
historicidade do direito. Entenda-se aqui, como explica Schioppa,
“justamente o cuidado com o qual eles buscaram reconstruir o teor
original e o significado autêntico dos textos dos juristas clássicos –
que eles admiravam mais do que os juristas da era pós-clássica –
levou-os a considerar as fontes contidas no Corpus iuris principalmente
como monumentos da cultura antiga, no mesmo nível dos textos literários,
históricos e poéticos. Mas isso não acarretava nenhuma convicção a
priori sobre a validade, em todo tempo e lugar, da normativa romana.
Pelo contrário, Budé já considerava com ironia aqueles que julgavam as
leis romanas divinas e caídas do céu, em vez de escritas por homens:
'leges non ab homine scriptas ac conceptas, sed de coelo delapsas esse
credunt'”. Mais tarde, François Baudouin chamou de “superstição fátua”
essa adesão “a priori” às disposições do direito da Antiguidade.
Outra grande preocupação da Escola Culta de Jurisprudência era a
“sistematização” cultural do direito. Como registra Schioppa, essa
preocupação está relacionada “à valorização das ciências humanas
distintas do direito, a começar pela filosofia, considerada pelos Cultos
não apenas útil, mas necessária para o jurista: Alciato já escrevia
assim, mas ele mesmo escrevera em outra ocasião que a única 'verdadeira
filosofia' é a história. O mesmo fizeram outros expoentes da escola. É
um posicionamento que encontrará em Rebelais, ex-aluno do jurista André
Tiraqueau, uma reprovação mordaz, no ponto em que ele declara 'loucos'
os juristas que ignoram a filosofia”.
Por fim, a orientação teórica em si dos cultos/humanistas era
vanguardista. Consoante lembra Schioppa, eles “sublinharam que o
necessário fundamento teórico do direito devia ser formulado em termos
universais (daí a importância atribuída à formação filosófica): é o caso
de Duaren e de Bodin. E isso levou Doneau a enfatizar o vínculo entre a
norma jurídica e a 'natureza': a natureza das coisas, a natureza do
homem, à qual o próprio príncipe não pode se opor. Segundo Connan, a
natureza constitui o núcleo fundamental dos próprios costumes, razão
pela qual ele identifica o direito consuetudinário compartilhado pela
maior parte dos povos, e não o direito legislado, com o direito
natural”.
Eram muito bons esses tais humanistas. Muito cultos, não acham?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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