08/05/2018



 
   
Marcelo Alves

 


Os humanistas (II)

Como prometido no artigo da semana passada (e costumo cumprir minhas promessas), hoje, para além da biografia dos mestres “humanistas”, trataremos dos principais postulados ou orientações propagadas pela denominada “Escola Culta de Jurisprudência”. E faremos isso com a ajuda, aqui e ali, de Antonio Padoa Schioppa e sua “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea” (edição da WMF Martins Fontes, 2014), que, publicada originalmente em italiano (2007), considero a melhor obra escrita sobre a temática nos últimos anos. 

Antes de mais nada, é importante lembrar que o desabrochar da Escola Culta de Jurisprudência decorre diretamente do panorama cultural europeu de então (séculos XV e XVI, especialmente), marcado pelo humanismo e pelo denominado “Renascimento” e a sua paixão pela Antiguidade Clássica, representada nas culturas grega e romana. A redescoberta de “novos” textos gregos e romanos, o estudo dessa literatura, dessa história, dessa filosofia, fez com que se tentasse imitar, tanto quanto possível, toda sua arte, toda sua técnica. Isso contaminou todas as ciências, inclusive o direito. Inicialmente na Itália (vide o caso de Andrea Alciato) e, em seguida e principalmente, na França, com o incomparável desenvolvimento do “mos gallicus iura docendi” (“modo francês de ensinar o direito”). 

Dentro desse contexto, Antonio Padoa Schioppa ajunta alguns postulados da “Escola Culta de Jurisprudência”. Um dos mais importantes, certamente o mais característico, talvez seja o viés “histórico-filológico” do (futuramente apelidado) “modo francês de estudar o direito”. De fato, desde os tempos de Alciato, às pesquisas de ordem filológica do direito somou-se uma tendência à historização do direito. Nas palavras de Schioppa: “(…) alguns importantes textos pós-clássicos – entre os quais as Pauli Sententiae, o Édito de Teodorico, a Collatio legum mosaicarum et romanarum, a Consultatio veteris cuiusdam iurisconculti – foram redescobertos e editados por Pierre Pithou e por outros estudiosos humanistas. Mas foi, sobretudo, a orientação filológica inaugurada no século XV por Valla e Poliziano que veio a conhecer no século XVI um desenvolvimento notável. Foram organizadas as primeiras edições críticas do Corpus iuris, baseadas no exame de vários manuscritos e publicadas sem o aparato da Glosa arcusiana para que o estudo ficasse mais concentrado no texto antigo”. Esse método histórico-filológico alcançou seu apogeu com Jacques Cujas, que empreendeu exaustivas pesquisas nos textos dos juristas romanos clássicos, a exemplo de Papiniano (142-212), na medida do possível com base em fragmentos originais anteriores ao Corpus Iuris Civilis (529-534) do Imperador Justiniano (482-565) e do seu grande jurista Triboniano (500-547). 

Some-se a isso, ainda relacionado a esse viés histórico-filológico, uma nova atitude “crítica” dos cultos em relação à própria historicidade do direito. Entenda-se aqui, como explica Schioppa, “justamente o cuidado com o qual eles buscaram reconstruir o teor original e o significado autêntico dos textos dos juristas clássicos – que eles admiravam mais do que os juristas da era pós-clássica – levou-os a considerar as fontes contidas no Corpus iuris principalmente como monumentos da cultura antiga, no mesmo nível dos textos literários, históricos e poéticos. Mas isso não acarretava nenhuma convicção a priori sobre a validade, em todo tempo e lugar, da normativa romana. Pelo contrário, Budé já considerava com ironia aqueles que julgavam as leis romanas divinas e caídas do céu, em vez de escritas por homens: 'leges non ab homine scriptas ac conceptas, sed de coelo delapsas esse credunt'”. Mais tarde, François Baudouin chamou de “superstição fátua” essa adesão “a priori” às disposições do direito da Antiguidade. 

Outra grande preocupação da Escola Culta de Jurisprudência era a “sistematização” cultural do direito. Como registra Schioppa, essa preocupação está relacionada “à valorização das ciências humanas distintas do direito, a começar pela filosofia, considerada pelos Cultos não apenas útil, mas necessária para o jurista: Alciato já escrevia assim, mas ele mesmo escrevera em outra ocasião que a única 'verdadeira filosofia' é a história. O mesmo fizeram outros expoentes da escola. É um posicionamento que encontrará em Rebelais, ex-aluno do jurista André Tiraqueau, uma reprovação mordaz, no ponto em que ele declara 'loucos' os juristas que ignoram a filosofia”. 

Por fim, a orientação teórica em si dos cultos/humanistas era vanguardista. Consoante lembra Schioppa, eles “sublinharam que o necessário fundamento teórico do direito devia ser formulado em termos universais (daí a importância atribuída à formação filosófica): é o caso de Duaren e de Bodin. E isso levou Doneau a enfatizar o vínculo entre a norma jurídica e a 'natureza': a natureza das coisas, a natureza do homem, à qual o próprio príncipe não pode se opor. Segundo Connan, a natureza constitui o núcleo fundamental dos próprios costumes, razão pela qual ele identifica o direito consuetudinário compartilhado pela maior parte dos povos, e não o direito legislado, com o direito natural”. 

Eram muito bons esses tais humanistas. Muito cultos, não acham? 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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