20/04/2018

   
Marcelo Alves



Os glosadores (I)

O direito romano dito “clássico” conheceu o seu apogeu entre os séculos I a.C. e III d.C. Todavia, apesar de ter sido essa a época de seu maior refinamento, é certo que não tem origem nesse período clássico a influência que o direito romano, via seu redescobrimento na Europa, exerce até hoje sobre nós.

De fato, é o “Corpus Iuris Civilis” – do Imperador romano bizantino Justiniano (483-565) e do seu jurista Triboniano (500-547) – que vai, como explica António Manuel Hespanha em “Panorama histórico da cultura jurídica europeia” (Publicações Europa-América, 1998), formar a “memória medieval e moderna do direito romano, pois a generalidade das obras dos jurisconsultos clássicos, que continuava a existir nas grandes bibliotecas do Próximo Oriente (Beirute, Alexandria, Constantinopla), perdeu-se, posteriormente, nomeadamente com a conquista árabe desse centros”. E a “tal ponto que, até aos inícios do século XIX – data em que se descobre um manuscrito das Institutiones de Gaio, um jurista dálmata do século III –, não se conhecia nenhuma obra completa, das milhares das provavelmente escritas por juristas romanos”.

O “renascimento” do direito romano é cercado de lendas, conforme lembra Jean-Marie Carbasse em “Manuel d'introduction historique au droit” (Presses Universitaire de France – Puf, 2017). De toda sorte, a partir da redescoberta de manuscritos e fragmentos outrora relegados ao esquecimento, ele se dá, de modo seguro e definitivo, abruptamente, no fim do século XI, no norte da Itália. O que é considerado por Stefan Zweig (1881-1942) como um dos “momentos estrelares da história” (li isso, tenho certeza, mas já não me recordo onde).

Essa redescoberta do direito romano (leia-se: o “Corpus Iuris Civilis” do Imperador Justiniano), para fins de estudo e futura aplicação como direito comum à Europa, é atribuída à “Escola dos Glosadores”, também apelidada de “Escola de Bolonha”, em homenagem àquela que é convencionalmente considerada a mais antiga universidade do Ocidente, a Universidade de Bolonha, especialmente no que toca ao ensino jurídico (sobre essa antiquíssima instituição de ensino, aliás, pretendo um dia dedicar um artigo inteirinho). Durante os séculos XII e XIII, sobretudo, essa escola de direito dedicou-se à aventura de “reconstruir” o direito romano, estudando-o com propósitos – e isso é muito importante frisar – essencialmente teóricos.

Pondo de lado as figuras lendárias – como um certo Pepo, mestre e gramático que, pelas bandas de Bolonha, entre os anos de 1070 e 1080, teria buscado explicar as palavras do texto de Justiniano –, foi mesmo o monge Irnério (circa 1050-1125), lá pelos últimos anos do século XI, o fundador e primeiro mestre glosador, no senso pleno da palavra, a quem se pode seguramente atribuir docência e produção escrita dentro dos cânones dessa nova escola. Irnério nasceu e deu aulas em Bolonha. Consoante Paulo Jorge de Lima em “Dicionário de filosofia do direito” (Sugestões Literárias S.A., 1968), “de seus escritos conservaram-se várias glosas sobre textos do direito romano. Atribuem-se-lhe, porém, outras obras, como um Formularium Tabellionum e Quaestiones de Juris Subtilitatibus”. Irnério foi mesmo, nesse princípio de tudo, “o cara”.

O fundador Irnério deixou como sucessores os seus discípulos Búlgaro, Martinho, Jacobo e Hugo, que, formando a segunda geração dos civilistas glosadores, restaram conhecidos como os quatro grandes doutores de Bolonha. A escola contou com outros grandes glosadores, agora já também para além de Bolonha (em Montpellier, na França, especialmente), tais como Rogério, Pillio da Medicina, o Piacentino e João Bassiano. Um destaque deve ser dado a Azzone (circa 1050-1230), jurista nascido em Bolonha, que ensinou por mais de quarenta anos na prestigiosa Universidade, e cuja obra principal foi a “Summa Codicis” sobre o “Código” e as “Institutas” de Justiniano, postumamente publicada em 1482. E, por fim, tem-se o grande Acurssio (circa 1182-1260), nascido em Florença, aluno de Azzone e, posteriormente, por grande parte da sua vida, professor na Universidade de Bolonha. Em torno de 1240, Acurssio definitivamente compila o conhecimento doutrinal da Escola dos Glosadores na chamada “Magna Glosa”, também conhecida como “Glosa Ordinária” ou, tão somente, “Glosa”, que, segundo a lenda, gozou de tanto prestígio que os tribunais acolhiam suas prescrições como se leis fossem. “Apelidado pelos contemporâneos Ídolo dos Jurisconsultos”, Acurssio foi, como anota Paulo Jorge de Lima, “o representante máximo da escola jurídica medieval dos glosadores”.

Mas como de fato trabalhavam os tais glosadores, em termos de forma, conteúdo e resultado? É isso que nós veremos no artigo/continuação da semana que vem.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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