Os comentaristas (II)
Se na semana passada tratamos da história e dos principais
personagens da chamada “Escola dos Comentaristas”, chegou a hora de
explicarmos, mesmo que resumidamente, as razões da difusão e do triunfo,
no fim da Idade Média, do método dos “comentaristas” ou “italiano”
(“mos italicus”) de enxergar e trabalhar o direito romano.
Antes de mais nada, o surgimento e consolidação da Escola dos
Comentaristas foi uma resposta aos novos tempos – de forte crescimento
citadino e mercantil em fins do século XIII e, sobretudo, nos dois
séculos seguintes –, para os quais o método essencialmente teórico dos
glosadores já não tinha mais valia. Fazia-se necessário adaptar o
direito romano redescoberto à vida, mais precisamente às novas
instituições e direitos locais (em especial os estatutos das cidades
italianas em veloz crescimento) que emergiam Europa afora.
Para tanto, estavam a postos os tais comentaristas, que, embora
rendessem todas as homenagens ao direito romano, não tinham para com
este a veneração quase sagrada que era comum aos glosadores. Mais
realistas, os comentaristas estavam dispostos a se debruçar sobre todo o
arcabouço jurídico de então – o direito romano redescoberto, o direito
canónico, o direito feudal, os vários estatutos citadinos – e,
orientados por finalidades essencialmente práticas, unificá-lo e
prepará-lo para as necessidades políticas, sociais e econômicas deste
entardecer da Idade Média. O próprio Bartolo, como registra Jean-Marie
Carbasse em “Manuel d'introduction historique au droit” (Presses
Universitaire de France – Puf, 2017), “considera a compilação justiniana
como um vasto reservatório de palavras e conceitos no qual o jurista
poderia trabalhar à sua própria conta. Ela não é mais que uma
matéria-prima própria a ser refundida em vistas de compor um novo
direito. Assim, Bartolo não hesita em fazer uso de outras fontes,
concorrentemente às fontes romanas, em particular os estatutos
municipais das cidades italianas e o direito canônico”.
Ademais, ao contrário do caráter assistemático do trabalho dos
glosadores (que não tinham um cuidado maior em interligar e harmonizar a
análise dos vários textos glosados), nesse contexto de integração de
várias ordens jurídicas, uma das maiores preocupações dos comentaristas
era dar à sua obra de interpretação e criação do direito um caráter
sistemático e harmônico. Como explica António Manuel Hespanha em
“Panorama histórico da cultura jurídica europeia” (Publicações
Europa-América, 1998), com a expansão desse “novo tipo de vida econômica
e social a regiões cada vez mais vastas e com estabelecimento de laços
comerciais intercitadinos e inter-estaduais, tornou-se necessário que
estes princípios de direito novo introduzidos pelos iura-propria nas
cidades italianas fossem integrados no ius commune (romano-justinianeu) e
que este, de um amontoado de normas (agora) de proveniência diversa
(romano-justinianeu, romano-vulgares, canônicas e estatutárias), se
transformasse num corpo orgânico dominado por princípios
sistematizadores, que correspondesse ao ideal intelectual de um discurso
orgânico, embora, como dissemos, respeitador dos pontos de vista
dissonantes. Está, portanto, em pleno desenvolvimento um processo de
integração de princípios novos – oriundos de necessidades de novos
estímulos sociais (aqui incluídos os culturais) e inicialmente
incorporados nos direitos próprios, mais sensíveis à vida – no ius
commune. O ideal de concórdia legislativa é perseguido pelos juristas
não só no limite do direito romano-justinianeu (objectivo que, como
vimos, não era de todo estranho aos glosadores), mas relativamente a
todo o ordenamento jurídico positivo. A contínua referência, a partir do
século XIV, ao direito antigo e ao direito novo, e, sobretudo, ao
problema das suas relações mútuas, reflecte plenamente o processo
histórico de actualização e alargamento do direito comum”.
É importantíssimo frisar que, nessa nova aventura intelectual, os
comentaristas fazem uso de processos racionais cuidadosamente
disciplinados por regras de lógica, retiradas dos filósofos clássicos –
de Aristóteles, sobretudo – e da escolástica tomística em voga, o que
era, para os fins do direito, algo inédito até então. Essa foi uma
ferramenta filosófica fundamental para uma empreita desse jaez, que
exigia uma mentalidade analítica e, sobretudo, uma enorme capacidade de
construção e sistematização de conceitos.
O bom fruto disso tudo é visível na qualidade emprestada aos
comentários, frequentemente extensos, dos textos romanos refundidos.
Peguemos o caso do multicitado Bartolo. Ele foi, sem dúvida, um grande
inovador do direito, tendo construído inúmeros novos conceitos jurídicos
e sistematizado outros tantos, derivados do direito romano
redescoberto, que chegaram aos nossos dias. No direito constitucional,
por exemplo, é célebre a doutrina “bartolista” acerca das relações e das
divisões de poder entre as grandes entidades políticas (a exemplo dos
impérios e das nações) e as coletividades regionais ou locais (cujo
exemplo mais visível seria a cidade). Também é célebre a doutrina
“bartolista” concernente ao “conflito entre leis” – que se dá entre
sujeitos de direito residentes em diferentes jurisdições, com sistemas
legais próprios e frequentemente conflitantes –, citada e repetida por
séculos, que está na origem de muitas das doutrinas contemporâneas do
direito internacional privado.
Por fim, apesar da propensão reformista dos comentaristas em
comparação aos glosadores, ainda aqui se mantém a ideia de que o
direito, fundado sobretudo no direito romano redescoberto, é um
repositório da experiência humana e um conjunto de normas que o
intérprete pouco pode alterar. A ordem jurídica dada era algo
basicamente indiscutível, mesmo quando ela se mostrava desatualizada.
Toda e qualquer sistematização ou mudança, se é que ela era possível,
tinha de ser efetuada dentro dessa ordem jurídica prefixada
autoritariamente fazia séculos.
De toda sorte, tudo – ou quase tudo, vão dizer alguns – tem um fim.
Não foi diferente com a Escola dos Comentaristas. Como anota Paulo Jorge
de Lima em “Dicionário de filosofia do direito” (Sugestões Literárias
S.A., 1968), ao final do século XV, essa “escola estava em decadência,
hostilizada pelos humanistas, os quais, voltados para o estudo da
Antiguidade clássica, passaram a combater os juristas medievais,
censurando-lhes o uso do método escolástico, o emprego do latim bárbaro e
o desconhecimento das letras, da história e das instituições antigas. A
obra de Giasone del Maino, apontado como o derradeiro dos
comentaristas, mestre de Andrea Alciato, prenunciava já a nova
orientação da chamada Culta Jurisprudências do período renascentista”.
Mas isso é outra história.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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