MEU GRITO
Valério Mesquita*
De anotações feitas à hora do crepúsculo em livros idos e vividos, pincei uma frase que me remete ao delírio das coisas de querer ter sido e não fui: “eu que tantos homens fui, não fui aquele em cujos braços desfalecia Matilde Ubach”. Pensamentos fluidos, na verdade, de reencarnações em lugares e tempos, sonhos e fugas do real ou transposições de corpo e espírito para lugares onde nunca naveguei, muito além da ponte de Igapó.
Ter sido, por exemplo, acompanhante
do Cristo nas peregrinações e presenciado seus milagres para não me dividir
hoje, nos conflitos das igrejas do mundo; gostaria de ter sido expectador do
teatro shakespeareano e tê-lo conhecido de perto e acompanhado todos os seus
porres nas tabernas escuras da Londres elizabetana; como amaria a passagem
pelos estúdios de cinema dos anos trinta e quarenta só para ver Charles
Chaplin, Stan Laurel e Oliver Hardy; ter aspirado o odor do charuto de Getúlio
Vargas e escutado em dó maior a gargalhada prazenteira; ou como figurante dos
filmes de John Ford, viajado nas diligencias do tempo pelas pradarias do oeste;
de Juscelino a companhia e as conversas dele com o que havia de melhor no PSD
naquela época: Israel Pinheiro, Amaral Peixoto, José Maria Alkamim, Benedito
Valadares, Tancredo Neves; ou de um polo para outro, muito me ufanaria haver
morado no Rio de Janeiro só para ouvir os discursos do bruxo Carlos Lacerda e
acompanhar as suas ações como governador com “m” maiúsculo do Estado da
Guanabara; eu, que tantos homens fui, não fui aquele que conviveu mais tempo
com Câmara Cascudo, pois considero privilegiados os que receberam essa oblação;
quantas vezes não me vi nos shows dos Beatles e como “macaco de auditório”, no
começo do yê-yê-yê, no programa Jovem Guarda das tardes de domingo; e quanto
fascínio não exercem sobre mim as cidades interioranas da Paraíba, Pernambuco,
Ceará, Minas, Bahia, das moças namoradeiras, das praças, dos olhares furtivos
como se eu quisesse, de repente, paquerá-las todas ou me compensar, ao menos,
em contemplá-las lindas e infinitas, renascidas de minhas ilusões de
adolescente.
Ah! Como esse mundo de hoje dói.
Não há mais ídolos. A violência urbana e a guerra mataram os sonhos e as
ilusões castas dos nossos pensamentos. É um mundo de aparências, de vaidades e
iniquidades. “Olhe, aquele ali é Machado de Assis e com ele Eça de Queiroz!”.
Faltou-me alguém que apontasse,
naquele tempo, essa visão dos dois monstros insuperáveis da literatura
luso-brasileira; e se o sonho triunfar sobre a verdade, posso dizer nesse final
que assisti Padre João Maria sarar os enfermos; preguei com Frei Damião na
noite litúrgica e estrelada de Macaíba; que vi subir o balão de Augusto Severo
e que assisti o último suspiro de Auta de Souza.
E se o leitor me acreditar, conheci
Lincoln na guerra da Secessão; vi Roosevelt, Getúlio Vargas, Tyronne e Evita na
Ribeira de guerra. Se todas essas reflexões são febris ou inverossímeis, é
preferível crê-las e esquecer as bestas do apocalipse: Donald Trump, Kim
Jong-un da Coreia do Norte, Bashar Al-Assad da Síria, cujas imagens
na televisão sujam de sangue as nossas esperanças por um mundo de paz.
As águas do rio da reminiscência
atingem novas margens e aprofundam o porão da memória. O Cine Teatro
Independência de Macaíba dos filmes do Gordo e o Magro, dos Três Patetas, de
Abott e Castelo além dos faroestes que não se repetem mais; a praça Antônio de
Melo Siqueira dos primeiros alumbramentos, dos passeios, do banco do namoro, do
coreto, tudo como qualquer lembrança de homem comum do interior; a rua do
Vintém, do Cajueiro, as Cinco Bocas, a praça da Matriz, o cais de pedra do rio
Jundiaí, as jabuticabeiras da Lagoa das Pedras, o Pernambuquinho; o Gango (o
baixo meretrício), de todas proibições à hora do crepúsculo; os antigos ônibus
da linha Macaíba/Natal que me consumia diariamente a farda estudantil;
enfim, o universo humano das figuras populares, coração e alma de Macaíba
que não para nunca.
Na noite de minha vida ainda
assisto, com nitidez, à passagem do meu rio porque eu continuo a ser os meus
personagens prediletos.
(*) Escritor.
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