22/01/2014


Lampião, místico ou mandingueiro?

Geraldo Duarte*

No cenário das crendices nordestinas o cangaço não poderia estar ausente.
Além daquelas arraigadas nos costumes das populações da caatinga, outras nasceram com o cangaceirismo.

Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, não somente praticava a mandingaria por ser altamente supersticioso, mas como estratégia de ilusória demonstração de miraculoso diante dos sertanejos e dos policiais incumbidos de sua perseguição. Nessa encenação ardilosa simulava e difundia feitos mirabolantes, assombrosos.
O jornal Correio de Aracaju, edição de 02/08/1938, em matéria sobre a morte de Virgulino, comenta que o povo acreditava ter ele “pacto com o diabo”, o condão de “desviar a direção das balas apontadas para si”, que “mantinha conferências com o chifrudo” e, para fugir das vistas dos perseguidores, “envultava-se”.
Mais fenômenos, absurdamente irreais, eram-lhe creditados e propalados pela cangaceirada. Garantiam-lhe ter o “corpo fechado” e oralisar “rezas fortes” capazes de o tornarem incólume e invencível.
Quando acampado ou acantonado, surgisse uma cobra ou um pássaro cantante, asseverava tratar-se de aviso agourento do sobrenatural. No mais breve tempo, reunia todo o bando e deslocava-se para outras paragens.
Com o objetivo de incutir nas pessoas das áreas invadidas ter o domínio de poderes misteriosos, fingia rituais e utilizava pantomimas várias.
Numa de suas passagens por Novo Amparo, Bahia, decidiu almoçar numa das casas do povoado. Antes da refeição, acendeu velas nos quatro cantos da sala, sussurrou palavras ininteligíveis e gesticulou, tudo sob o olhar de espanto dos presentes.
Durante os tiroteios com soldados, junto com seus capangas e aos gritos, invocava por Deus e pelo diabo. Todos imitavam grunhidos, relinchos, zurros, latidos, berros e produziam sons esquisitos com o fito de aterrorizar os militares.
Impressionados, existiram milicianos crentes de que eles “viravam demônios”.
Onde estivesse, o fictício capitão, ao meio-dia, hora que tinha como má, ajoelhava-se e orava. Por igual, repetia o rito à meia-noite, momento em que dizia estar o diabo pondo a perder as criaturas.
Jamais desrespeitava padre, inclusive, beijava as mãos dos que encontrava pelos caminhos. Os juízes recebiam veneração especial.
Pendurados no pescoço trazia escapulários, amuletos diversos e um crucifixo de ouro maciço. Sobre estes, enlaçado, um vistoso lenço, em cujas pontas viam-se medalhas presenteadas por padre Cícero, quando esteve em Juazeiro do Norte, Ceará.
O major Inocêncio de Lima, fazendeiro no município de Custódia, declarou, em 1936, a jornalista do Diário de Pernambuco, que cangaceiro maior afirmou-lhe jejuar todas as quartas-feiras em respeito ao sacerdote cratense.
As teatralidades do líder da cangaceiragem, para mostrar-se e ao seu bando poderosos e indestrutíveis, muito impressionavam os campesinos.
Cuidadosamente, o grupo apagava os rastros, em determinado trecho da marcha, para simular um “desaparecimento no ar”. Deslocava-se com os integrantes calçados com alpergatas de rabicho ao contrário, conduzindo os perseguidores a inversão do rumo tomado. Estes, constituem-se exemplos das inúmeras enganações praticadas. E, na maioria das vezes, exitosas.

Certa feita, atacados por uma volante policial, provocaram fumaça na mata e, através dela, escaparam em rigoroso silêncio. O ocorrido propalou-se como um sumiço mágico, graças às forças protetoras do além, sendo arguido com o testemunho da própria tropa.
Devoto de São Jorge, Santa Luzia e São Thiago, recorria a esses santos nos momentos difíceis de seu sangrento banditismo.
Ida Ribeiro de Sousa, sobrevivente da refrega de Angicos, em 1938, e mulher de José Ribeiro da Silva, o Zé Sereno, citou as rezas obrigatórias diárias da rotina de Lampião. O Padre Nosso e o Ofício a Nossa Senhora, no amanhecer do dia, ato compartilhado com os seguidores.

Frequentemente, costumava recitar a oração de fechamento de corpo, que teria recebido das mãos do “Padim Ciço”:
"Justo juiz de Nazaré, filho da Virgem Maria, que em Belém fostes nascido entre as idolatrias. Eu vos peço senhor, pelo vosso sexto dia e pelo amor do meu padrinho Padre Cícero que, meu corpo não seja preso, nem ferido, nem morto, nem nas mãos da justiça envolto. Pax tecum, pax tecum, pax tecum.
Cristo assim disse aos seus discípulos: se os seus inimigos vierem para prender-me, terão olhos e não me verão, terão ouvidos e não me ouvirão. Terão bocas e não me falaram. Com as armas de São Jorge serei armado. Com a espada de Abraão serei coberto. Com o leite da Virgem Maria serei borrifado.
Na arca de Noé serei arrecadado. Com a chave de São Pedro serei fechado,
onde não me possam ver, nem ferir, nem matar, nem sangue do meu corpo tirar. Também vos peço senhor, por aqueles três cálices bentos, por aqueles três padres revestidos, por aquelas três hóstias consagradas, que consagrastes ao terceiro dia, desde as portas de Belém até Jerusalém e pelo meu santo Juazeiro, que com prazer e alegria eu seja também guardado
de noite como de dia. Assim como andou Jesus no ventre da virgem Maria,
Deus adiante paz na guia. Deus me dê à companhia, que deu sempre a virgem Maria, desde a casa santa de Belém até Jerusalém. Deus é meu pai. Nossa mãe das dores, minha mãe. Com as armas de São Jorge serei armado. Com a espada de São Thiago serei guardado para sempre, amém.".

Na madrugada de 28 de julho de 1938, na fazenda Angico, fronteiriça à vila Piranhas, Sergipe, estava Lampião morto e derrotado o cangaceirismo. Sem misticismo ou mandingaria.
                                                                            
                                                             *Geraldo Duarte é advogado, administrador e dicionarista.
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Colaboração do Amigo Jornalista Walter Gomes - Brasília, DF

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