04/03/2020




QUASE VINTE ANOS DE LONGAS ESPERAS

Valério Mesquita*

A notícia chegara pela manhã trazida pela voz insuspeita do então presidente da Fundação José Augusto. Pelo telefone, o entusiasmo de Woden Madruga me contagiava porque, na verdade, conhecia o meu esforço e as cobranças repetidas através dos jornais e da tribuna da Assembleia Legislativa. Ele acabara de bater o martelo com o governador Garibaldi Filho decidindo a restauração dos Guarapes e toda a área adjacente do sítio histórico, onde se ergueu o primeiro empório comercial do Rio Grande do Norte de exportação e importação de produtos, às margens dos rios Potengi/Jundiaí. Não há melhor oração pela alma de Fabrício Pedroza do que a reconstrução arquitetônica do Casarão cuja vista do alto da colina emociona e devolve o esplendor de uma fase importante da vida econômica do Rio Grande do Norte.
O chamado Engenho dos Guarapes foi o marco expressivo do desenvolvimento econômico dos séculos XVIII e XIX, através da comercialização de produtos agrícolas exportados para outros estados e para o exterior. Viveu o seu apogeu ao tempo de Fabrício Gomes Pedroza, rico comerciante, até chegar o seu declínio econômico no início deste século. O prédio está situado no alto de uma colina, próximo à divisa dos municípios de Natal e Macaíba, e embora em péssimo estado de conservação, nele podem ser aplicadas as técnicas arquitetônicas utilizadas na reconstrução do Solar do Ferreiro Torto em Macaíba, cuja situação física era semelhante ou pior que o Casarão dos Guarapes. Vivia, em 2001, o momento crepuscular do meu quarto mandato parlamentar e não poderia receber melhor notícia. Atravessava aquele momento da coleta das passagens esparsas e produtivas da vida pública quando senti soar a hora da ressurreição do marco mais importante da história econômica do Rio Grande do Norte. E a emoção é maior porque sou de Macaíba, o filho, o irmão, o cidadão, o íntimo, com uma presença permanente e evocativa de amor e respeito a minha terra.
 O projeto arquitetônico estava entregue à competência do arquiteto Paulo Heider Feijó, responsável pela restauração dos mais importantes monumentos históricos do Rio Grande do Norte. Prometi que ao lado do presidente da Fundação José Augusto somaria os esforços para a consecução desse objetivo que resgata o denso passado histórico do nosso estado. Woden tem raízes familiares em Macaíba onde viveu um tempo de sua adolescência ao lado do seu primo Vinícius Madruga, sob os cuidados de sua tia D. Nazaré, anjo de ternura e paz. Além de sua vontade política e administrativa, somara-se à doce e terna cumplicidade telúrica de desarmar os presságios e resgatar os frutos do tempo. A área foi tombada pelo Patrimônio Histórico, desapropriada e paga na época referida.
Dezenove anos são transcorridos, Woden e eu ainda permanecemos na estação das longas esperas. Com o olhar contemplativo na paisagem de um tempo que não queremos sepultar. Os moedeiros do erário ainda escondem o dinheiro. Os pedaços dos Guarapes continuam espalhados no chão dos antepassados. Vilma, Rosalba, ambas ignoraram a restauração dos Guarapes. Robinson, além do desprezo, não aplicou um milhão de reais transferidos pelo Ministério do Turismo e depositados na Caixa Econômica Federal do Rio Grande do Norte. Ele permitiu que o dinheiro voltasse para Brasília porque a iniciativa era dos três: Valério, Woden e Garibaldi Filho. Reclamei até a Procuradoria do Patrimônio e da Defesa Ambiental do Rio Grande do Norte que envidou esforços junto a Fundação José Augusto e a Caixa Econômica sem obter êxito face a má vontade política, administrativa e pessoal do citado ex-governador. E agora, até quando?
(*) Escritor.




Portulanos, caravelas, a Escola de Sagres...
Tomislav R. Femenick – Autor do livro “Os Herdeiros de Deus: a aventura dos descobrimentos”

Antes das grandes aventuras portuguesas e espanholas por mares desconhecidos, realizava-se na Europa uma navegação costeira, que se orientava por pontos de referência, naturais ou não, localizados em terra, tais como baias, enseadas, ilhas, pontas, istmos, cidades, castelos, fortes e, principalmente, portos. O conhecimento desses acidentes, primeiro foi passado de forma oral entre mestres e aprendizes, depois passou a seu descrito em documentos chamados de “portulanos” (roteiros que descreviam os pormenores das costas marítimas), que abrangiam apenas o Mediterrâneo. Em seguida, o seu uso estendeu-se até ao mar Negro, à costa ocidental da Europa, às Ilhas Britânicas e à África. Algumas vezes eram acompanhados de “mapas de portulanos”, cartas náuticas primitivas que, por não disporem de instrumentos que identificassem as graduações de latitude e longitude, exibiam os contornos litorâneos com um perigoso grau de imprecisão.
Para essa navegação de cabotagem eram usadas galeras (ou galés) e veleiros. Os primeiros eram barcos de dupla propulsão, a remo e a vela, com grande mobilidade. Como precisavam de um grande número de remadores, sua capacidade de carga era pequena, se comparada com o seu peso total. Os veleiros do Mediterrâneo contavam com a chamada vela latina, uma vela triangular que trabalhava no sentido de proa à popa, envergada em um mastro cruzado por uma peça de madeira ou ferro (carangueja). No Mar do Norte eram mais usadas as velas retangulares, maiores e mais apropriadas para um melhor aproveitamento dos ventos. Embarcações de ambos os tipos tinham incorporado, desde o século XIII, o leme de cadaste ou de roda – uma forte peça de madeira que integrava a parte de trás da quilha. Preso à popa, o leme dava a direção das naves (FAVIER, 1995; GARCIA, 1999).
A navegação oceânica exigia outras técnicas. Agora não mais haveria terra à vista, pois a viagem se dava em alto-mar, através de oceano desconhecido. A longa duração fora dos portos exigia embarcações ágeis, porém não propulsados por remos, pois uma tripulação de remadores exigiria provisões em quantidade que não seria possível transportar. Portugal saiu na frente. No porto de Lagos foram feitas as primeiras experiências que deram origem à caravela, uma embarcação planejada para levar e trazer os navegantes de volta. Os navios a vela sofreram inovações. Um terceiro mastro nos anos de 1430. Em pouco tempo aparecem quatro ou cinco mastros.
Todavia, a caravela foi uma criação portuguesa, embora que tendo como base barcos de origem muçulmana, com as quais os lusitanos conviveram durante o tempo da ocupação moura. Entre eles estavam o caravo (do árabe qarib), semelhante ao pangaio (MARQUES, 1984), ainda hoje usado nas viagens costeiras na África oriental e na Índia. No rio Douro era utilizada uma embarcação menor que o caravo, chamada de caravela (qarib + ela = caravela) – (BOORSTIN, 1989). A caravela lusitana era uma embarcação veloz, forte e segura para a sua época. Era construída com vigas e tábuas de carvalho, pinho e sobro e cravos de cobre e, raramente, de ferros. No seu projeto não havia lugar para curvas graciosas, entalhes elaborados ou cores brilhantes. Sua pintura preta, feita com betume, procurava resguardar o casco do ar, da umidade e do ataque dos crustáceos. Era a embarcação ideal para as viagens de descobrimento. “La carabela comenzó a usarse en España em el segundo cuarto del siglo XV y seguramente a imitación de los portugueses” (PADRON,1981).
Não se pode falar nos pré-requisitos técnicos necessários aos descobrimentos sem falar no Infante Dom Henrique e na sua criação, a escola de Sagres, a NASA do século XV. Dom Henrique (terceiro filho do rei de Portugal), tinha uma personalidade mística e aventureira, como todo homem medieval, porém se diferenciava pela curiosidade científica, principalmente para com as coisas do mar. Formalmente nunca houve a tal escola. Houve, isto sim, uma região, o promontório de Sagres, onde, a partir de 1438, foram criadas as condições para o desenvolvimentos das técnicas náuticas.  O uso da bússola, do astrolábio, da balestilha (instrumento para medir a altura dos astros) primitiva, do quadrante e de mapas mais precisos resultou dessa junção de saberes. Muito do que se fazia em Sagres – não obstante – era vasado, principalmente para às coroas de Leão e Castela.

Tribuna do Norte. Natal, 05 mar. 2020.

02/03/2020


SOPRA UM VENTO FORTE

Valério Mesquita*

Não, não é o vento de Geraldo Melo soprado no Rio Grande do Norte lá pelos fins e confins dos anos oitenta. Na Espanha, o cardeal Cañizares denunciou a existência de uma revolução social para destruir os postulados da Igreja Católica. A assertiva cardinalícia aduz, ainda, que esse movimento oculto já atua nas escolas e na mídia espanhola e que se alastra nos países vizinhos. Conhecemos que o mundo ocidental é o maior herdeiro no globo terrestre da doutrina cristã. Depois da invasão dos bárbaros, lá pelo século quinto, foram os monges nos conventos, os verdadeiros sustentáculos da fé do Novo Testamento. A revolução social aludida pelo alto dignitário da Igreja Católica espanhola já se estende aos países das Américas, através da perversão dos costumes, da subversão do comportamento da juventude na família, na mídia e nas escolas. É a crise típica de uma sociedade que tem se afastado de Deus, elegendo o mundanismo como valor essencial de vida, embora, passageira, fáctil, fácil, fútil e fóssil. O fato é que o vento sopra forte. Sopra uma revolução social, no dizer do cardeal Cañizares contra a religião católica em plena Espanha (e não somente lá, mas no mundo todo), que já deu reis católicos e espargiu igrejas, conventos e padres em diversas partes do mundo.
De modo geral, as religiões católicas e evangélicas estão atentas no Brasil para o poder da mídia e da influência poderosa que elege e deselege políticos; que manda e desmanda apresentadores de tv para o podium do poder, fazendo a cabeça do jovem e do pobre. Assim também faz a internet: miséria e abusos. Por isso, as igrejas evangelizam mais na televisão do que em seus templos porque, por aqui, a revolução de estrangular o cristianismo já começou. Vejam só: na tv a cabo, contei quatro canais católicos privativos e três evangélicos, sem contar com os programas diários, alugados e pagos por segmentos protestantes diversos. Tudo isso, para conter, esbarrar, meu caro cardeal Cañizares, o vento forte que sopra da península ibérica.
A denúncia do líder religioso espanhol se reveste da maior importância porque foi ditada pela rede de comunicação mundial do Vaticano. Na verdade, a revolução social a que se refere, não parte de grupos, partidos políticos, governos ou quaisquer instituições privadas. Ela provém da crise de caráter, de espiritualidade, do desajuste familiar. Ela, – a revolução social contra a Igreja Católica – está no homem. Não imaginem que vem de correntes evangélicas. Não. Porque se não anuírem que o Deus e a Bíblia são os mesmos, todos naufragarão na praia, vítimas do próprio cata-vento da discórdia. Que isso Deus não permita e que sejam apenas palavras ao vento.
O abismo da destruição iminente do mundo já foi cavado.

(*) Escritor.

22/02/2020


REFLEXÕES SOBRE UM JOGO SUJO

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

A insegurança é o medo nosso de cada dia. A violência passou a ser uma necessidade fisiológica do ser humano. Trata-se de um tema que merece um profundo estudo sociológico. Evidentemente que não me proponho abordá-lo sob esse prisma. O policial é um facínora? Ou o facínora é um policial?
Esse é o indigesto caldo cultural da sociedade brasileira dos últimos dias. Faz-me pensar que os fins de século e milênio, são como as ressacas das marés que trazem à tona a sujeira anticósmica ou propriamente o lixo da civilização. O estado, o mostro Leviatã de que nos falou o filósofo Thomas Hobben, nunca deixou de produzir vítimas tanto nas causas da violência como nos efeitos. A fome, miséria, ignorância e o desemprego continuarão a multiplicar a marginalidade na sociedade desigual. O Poder Público cria o bandido dede pequeno para depois destruí-lo em nome da segurança. Quando o direito e a segurança da educação, da saúde, da nutrição deveriam lhe ter sido assegurados desde o começo. Culpar a polícia pelos exageros é hipocrisia. Policiais e bandidos são seres humanos. Vivem o histerismo da sobrevivência. Ambos produtos do Estado falido, da sociedade injusta, da incompetência da justiça que além de morosa tem sido geradora de equívocos aberrantes.
Como clamar por direitos humanos numa guerra suja de vida ou morte, se foi esquecido antes o direito da criança? Por que instituições como a OAB só procuram combates os efeitos somente e não as causas? Deixa transparecer que defender a vida do marginal em contraposição a do policial, como se este também não fosse um cidadão.
É um campeonato interminável. As disputas sempre sairão empatadas, mas fazendo vítimas inocentes, que tem torcedores são, as, espectadores do próprio drama porque o sistema quis assim e agora parece ser tarde. Será mesmo? Por fim, lembrei-me do compositor Jackson do Pandeiro, cantando: “Esse jogo não pode ser um a um, se o meu time perder eu mato um”.



14/02/2020



A CALÇA MARROM


Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

O almirante inglês Lord Nelson famoso estrategista das batalhas contra Napoleão Bonaparte pode ser um exemplo para certos, ousados e intrépidos políticos da nossa província submersa.
Conhecido pela sua destemida coragem, o Lord gostava muito de se jactanciar perante os seus comandados. Na terrível batalha de Tralfagar, a bordo da sua nau impertigável e altaneira, pediu ao observador da esquadra, que lhe informasse a quantidade e a posição do inimigo. Do alto do navio, ouviu que a frota francesa se resumia a quarenta ou cinquenta embarcações e navegava a bombordo. Ato contínuo, ordenou ao seu ajudante pra trazer-lhe a túnica vermelha para enfrentar o inimigo que já se aproximava. Explicou o condestável inglês que o casaco rubro disfarçaria o sangue, se porventura fosse atingido, a fim de não influir no ânimo da tropa real marinha britânica.
Ao cabo de alguns minutos, o Lord Nelson recebeu nova e inesperada notícia da torre de observação: “Não são quarenta nem cinquenta milorde, são quatrocentos navios de guerra!”. O almirante Nelson quedou-se pasmo e lívido. Virou-se para o seu ajudante de ordens e sentenciou calmo mas preocupado: “Traga-me a calça marrom”.
A bravura verbal de alguns guerreiros desse semiárido barrica-se por trás de um suposto conhecimento de suas potencialidades. Não sabem que no paiol de onde saíram, continua ardendo a chama acesa ou fogo fátuo de sua irresponsabilidade no trato da coisa pública. E ai, a explosão será inevitável.
Ei garçom, uma calça marrom, por favor!
Qualquer semelhança com os atores e atrizes da política do Rio Grande do Norte, é mera coincidência.




RELEMBRANDO CORTEZ PEREIRA

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

Escrever sobre ele é relatar uma odisséia. A travessia do sofrimento político, os algozes, os coveiros do seu governo até a eutanásia dos seus sonhos. Recobro os instantes felizes que presenciei ao lado de um homem de cultura, de uma cordialidade que não encobria formas perversas de indignidade e traição.
Meu pai foi seu amigo dileto e colega na Assembleia Legislativa, no período das turbulências entre o PSD versus UDN. O velho Mesquita de pé, altivo e irreverente, apontava para a bancada udenista e disparava ironicamente: “Dessa bancada só quem presta é Cortez Pereira!”. A amizade dos dois se alimentava também nos encontros semanais em Macaíba para impressões sobre a política e o inverno, como dedicados proprietários rurais.
Quando Alfredo Mesquita faleceu em abril de 1969, Cortez – sobre quem o meu pai vaticinava que um dia seria governador do Rio Grande do Norte – foi escolhido no ano seguinte. Lamentei muito ele não ter sobrevivido para contemplar a face desse dia. No seu governo fui nomeado subchefe da Casa Civil, tendo ocupado, posteriormente, após uma reforma administrativa, a coordenação de Assistência aos Municípios do Rio Grande do Norte e a diretoria do Departamento de Serviço Social do Estado. Daí, me exonerei para ser candidato a prefeito de Macaíba. Eleito, Cortez Pereira levou a Telern para o município, comparecendo a duas posses: a minha e a de Dix-Huit Rosado em Mossoró. Inaugurou uma agência do Bandern em Macaíba, a Casa do Agricultor, eletrificação rural, escolas e a alegria de receber em minha casa o rei do baião Luiz Gonzaga.
Em 1973, foi padrinho de batizado de minha filha Isabelle. Relembro, ainda, como seu auxiliar, os memoráveis discursos e palestras. Uma das inesquecíveis, foi a da Federação das Indústrias de São Paulo empolgando Amador Aguiar do Bradesco, Mário Amato, entre outros. Era a pregação do “desenvolvimento econômico” do Rio Grande do Norte, das suas riquezas e potencialidades nos porões do PIB da paulicéia desvairada.
Recordo a sua altivez ao enfrentar e resistir o autoritarismo do general Meira Matos, comandante da guarnição de Natal, que armou estocadas com o objetivo de tirá-lo do governo.
Evoco Cortez Pereira como professor universitário, orador, polemista, deputado estadual, diretor do Banco do Nordeste, suplente do senador Dinarte Mariz que encantou o senado com os seus pronunciamentos em favor do Nordeste e do Rio Grande do Norte. Relembro o projeto camarão, do bicho-de-seda, do Boqueirão, do turismo (Centro de Turismo, bosque dos namorados, cidade da criança e a duplicação da entrada de Natal por Parnamirim). Relembro Cortez santificado pelo padecimento da dor, mas redivivo na lembrança e na admiração de tantos que conheceram a pureza dos seus sonhos. “Louvar o que está perdido torna querida a lembrança”. Shakespeare. Mas, outra injustiça clama alto: Cortez ainda não recebeu da classe política do Rio Grande do Norte o reconhecimento merecido do seu nome constar na frontaria de uma obra oficial importante do estado que amou e por ele foi imolado.
 (*) Escritor



As escravas do Islã
Tomislav R. Femenick – Mestre em Economia, com extensão em sociologia e historia – Do IHGRN

Os fiéis muçulmanos identificam o Alcorão como sendo a palavra de Deus, revelada ao profeta Maomé – equivalente à Bíblia, para os cristãos. E o Alcorão, na sura (versículo, capítulo) 16, reconhece a escravidão como uma instituição legítima: “Deus citou em exemplo um escravo que nada possui e em nada manda e um homem livre [...]. Podemos considerar os dois iguais? Não! Louvado seja Deus!” (O ALCORÃO, Tradução de Mansour Challita, s.d.). Em vários outros capítulos, há citações que coonestam o escravismo: quando determina a aplicação da lei de Talião para os homicídios (escravo por escravo); quando reconhece a preferência por uma escrava crente no Islã sobre os descrentes; quando permite ao um homem ter as escravas que puder comprar, com o direito de ter relações sexuais com um número ilimitado de escravas e concubinas, inclusive as casadas; ou quando recomenda tratar os escravos com benevolência etc.
A mesma forma de aceitação explícita e implícita da escravidão está no Hadice, ou Hadith (coletânea de palavras e atos de Maomé, que complementa o Alcorão), quando prega a guerra contra aqueles que não aceitam a conversão ao islamismo, sua captura e escravização, bem como quando recrimina as fugas dos escravos. Entretanto, a maioria das citações versa sobre a escravidão de mulheres. Por exemplo: não se deve açoitar a esposa, como se fosse uma escrava; o pai pode dar uma escrava ao filho, como um presente sexual; após casar, ao comprar uma escrava ou um camelo, um homem deve rezar, nos dois primeiros casos, e procurar o refúgio de satã, no último; quando os seus donos morrem, as escravas devem esperar dois meses e cinco dias para casar novamente; se as escravas engravidarem de seus donos, estes podem determinar o aborto, se assim desejarem; se as esposas ciumentas fizerem algo de mal às escravas de seus maridos, as esposas devem ser punidas e os senhores devem continuar a possuir as escravas; as escravas que se dedicarem à feitiçaria podem ser executadas; os crimes de adultério, quando cometidos por homem, não podem ser compensados pela doação de uma escrava; as mulheres e crianças dos inimigos vencidos em guerra podem ser transformadas em escravas, porém não devem ser estupradas e recomenda-se que se tomasse banho depois de fazer sexo com escravas. O próprio Maomé tinha escravas e escravos, fato registrado na sura 33 do Alcorão e no Hadice Mishkat 470. Ali ibne Abi Talibe, genro de Maomé e líder dos xiitas, teve dezessete escravas como concubinas. No tocante à mulher escrava, em certos aspectos, o próprio Alcorão deixa margem a interpretações dúbias. Em uma sura está prescrito: “Não constranjais vossas escravas à prostituição se preferem a castidade. Já se forem compelidas, Deus lhes perdoará”.
Todavia, o escravo sempre teve reconhecida a sua condição de ser humano. Uma sura diz: “Certamente, Deus vos fez os seus amos, se Ele quisesse, teria da mesma forma vos submetido a eles como escravos”. Em outra está escrito: “Sede bondosos com vossos [...] escravos. Deus não ama os presunçosos e os soberbos”.
Agora a pergunta que se faz é: qual a real extensão do envolvimento do islamismo, religião e forma de vida, com a escravidão? Realmente a prédica religiosa e a prática eram conflitantes entre si. No caso específico da África Negra, quando os maometanos lá chegaram, venceram, conquistaram e converteram povos com uma longa tradição de escravismo e continuaram “o padrão de incorporar escravos negros da África às sociedades ao norte do Saara e ao longo das costas do oceano Índico [...]. Durante mais de setecentos anos antes de 1450, o mundo islâmico era praticamente o único eixo de influência externa na economia política da África [...]. As províncias islâmicas centrais constituíam o mercado para os escravos; o abastecimento vinha das regiões de fronteira” (LOVEJOY, 2002). O tráfico de escravos africanos, praticado pelos islamitas, dava-se em duas vertentes principais: nas várias rotas transaarianas e na costa leste africana, pelo Oceano Índico e pelo mar Vermelho. Com base em levantamentos efetuados por alguns historiadores, estima-se que os muçulmanos foram os responsáveis pela venda de aproximadamente onze milhões de africanos escravizados (LOVEJOY, 2002), maior que o tráfico efetuado por europeus. Os fatos falam por si mesmo.

Tribuna do Norte. Natal, 12 fev. 2020.