30/09/2021
O REPENTE NORDESTINO
Diogenes da Cunha Lima
Nenhuma região do país é tão pródiga na inventividade como o Nordeste. A arte do repente identifica a nossa região. É o exercício da poética popular, do sertão ao litoral, com versos de fazer inveja a poetas eruditos.
O repente nordestino é duelo verbal de cantadores com o acompanhamento de viola, rabeca ou pandeiro (embolada). Em todas as suas formas, participa do rico Patrimônio Imaterial do Brasil. É o diálogo do improviso e da liberdade vocabular.
Muito se discute sobre a sua origem. Como sempre, Câmara Cascudo vai mais longe. Para ele é o desafio oriundo do canto amebeu, grego, do tempo de Homero. É canto alternado, obrigando resposta às perguntas do companheiro.
Muitos poetas cantadores tornaram-se célebres. Pinto do Monteiro (sempre considerado o mestre da cantoria), um dia, recebeu Lourival Batista, crescente em versos quentes. Glosaram os dias da semana com o humor produzido por trocadilho. Pinto: “No lugar que Pinto canta/não vejo quem o confunda. / Que o rio da poesia/o meu pensamento inunda. /Terça, quarta, quinta e sexta, /sábado, domingo e segunda”. Lourival respondeu: ”Sábado, domingo e segunda, /quarta e quinta. / Na sexta não me faltando/a tela, pincel e tinta/pinto pintando o que eu pinto. /Eu pinto o que o Pinto pinta”.
Ninguém sabe dizer melhor das coisas da região do que o poeta mossoroense Antônio Francisco. É sempre expressiva a sua linguagem para fazer pensar. Brevíssimo exemplo: Falando sobre a fome, ele começa: “Engoli três vezes nada...”.
Fabião das Queimadas, escravo que tangia bem o verso e a rabeca, foi provocado para falar sobre a paga dos seus vinténs arrecadados. Que seria um poeta? Ele explicou: “Canta longe um passarinho/do outro lado do rio, /uns cantam porque têm fome, /outros cantam por ter frio. /Uns cantam de papo cheio, /outros de papo vazio”.
Não era cantador, mas poeta popular, popularíssimo. Aliás, Renato Caldas foi um lírico, improvisador, bem-humorado. Pediram-lhe que fizesse saudação ao escritor e pintor Newton Navarro. Versejou: “Adão foi feito de barro/mas você Newton Navarro foi feito de inspiração. / Dos passarinhos, das cores/da noite feita de amores/do luar do meu sertão”. Certa vez, o poeta tomou café em uma residência na cidade de Angicos e ao guardar suas coisas, distraidamente, incluiu uma colherinha. Já na sua cidade, em Assu, verificou o equívoco e voltou. Desculpou-se dizendo: “Eis aqui, dona Chiquinha, /devolvo sua colher. / De coisa que não é minha/eu só aceito mulher”.
Na função de conselheiro do Iphan, esforçar-me-ei para que o Repente Nordestino seja reconhecido como Patrimônio Imaterial Brasileiro.
Umarizal e a devoção ao Coração de Jesus
Padre João Medeiros Filho
Eis uma das devoções mais antigas do catolicismo. Nasceu aos pés da Cruz, quando “um dos soldados lhe abriu o lado com uma lança, jorrando sangue e água.” (Jo 19, 34), simbolismo da Eucaristia. No século XVII, a freira Margarida Maria de Alacoque deu impulso ao culto, posteriormente difundido pelos jesuítas e membros do Apostolado da Oração. Este, desde 2013, integra com o Movimento Juvenil Eucarístico (Cruzada Eucarística) a Rede Mundial de Oração do Papa, cujo símbolo é o Coração de Jesus, ícone do amor de Deus pela humanidade. “Eis o coração que tanto amou os homens”, segundo a visão de Santa Margarida, em Paray-le-Monial (França). O Apostolado da Oração originou-se em Vals-les-Bains (França), num colégio jesuíta, dirigido por Padre Gautrelet, em 1844. No Brasil, o seu primeiro núcleo foi fundado na Igreja de Santa Cruz do Recife, em 20 de junho de 1867. Entretanto, foi em 1871, na cidade de Itu (SP), que o movimento religioso se solidificou, graças ao empenho de Padre Bartolomeu Taddei, S.J.
O Cardeal Dom Sebastião Leme, quando arcebispo do Rio de Janeiro, assim se expressou: “O renascimento espiritual do Brasil é obra do Apostolado da Oração”, o qual intensificou a vida eucarística com a prática sacramental das primeiras sextas-feiras. Marcou a espiritualidade e vivência litúrgica de muitas paróquias. Revitalizou a prática religiosa individual e familiar, por meio da consagração dos lares ao Coração de Jesus. O Brasil também lhe foi dedicado por ocasião do XXXVIº Congresso Eucarístico Internacional, celebrado em 1955, no RJ.
A solenidade litúrgica do Coração de Jesus é celebrada na sexta-feira, oito dias após a festa de “Corpus Christi”, entre maio e junho. Todavia, várias comunidades católicas comemoram-na, no mês de setembro. Isso acontece há cento e vinte anos em Umarizal, onde se mantém forte apelo devocional ao Sacratíssimo Coração. Existe uma explicação histórica para isso. Entretanto, cabe primeiramente lembrar que o Brasil conta com dezesseis dioceses que têm o Sagrado Coração como padroeiro, sediadas em diversos estados. No Rio Grande do Norte, existem cinco paróquias e dezenas de templos com esse orago. A primeira paróquia potiguar com tal título foi erigida em Mossoró, em 1926, por decreto do bispo diocesano de Natal, Dom José Pereira Alves. Em 1964, Dom Gentil Diniz Barreto a suprimiu, incorporando parte de seu território à recém-criada freguesia do Alto de São Manuel.
Deste modo, a paróquia de Umarizal passou a ser no RN a mais antiga e tradicional com esse patrono, criada em 04 de janeiro de 1959, no episcopado de Dom Eliseu Simões Mendes. No entanto, a antiga capela com tal invocação data de 1902, construída no lugarejo Gavião por Padre Abdon Odilon Malibeu de Lima. No ano de 1901, em sua primeira desobriga pastoral naquela localidade introduziu a devoção ao Coração de Jesus. Aquele sacerdote (também bacharel em Direito) era natural de Campina Grande (PB). Recém-ordenado, fora nomeado pároco de Piancó e, pouco tempo depois, transferido para Martins, onde permaneceu, até 1904. De lá, foi exercer o sacerdócio em Cametá (PA), a convite de seu conterrâneo Dom Santino Maria da Silva Coutinho, escolhido bispo de Belém (PA).
Dentre as comunidades que celebram a festa do Coração de Jesus, em setembro, Umarizal é fiel aos fatos, à história e tradição. Há um acontecimento determinante. Aos 18 de setembro de 1864, Pio IX beatificou Margarida Maria. Seus devotos brasileiros começaram a rezar uma novena, rogando a Deus pela sua canonização, ocorrida em 1920. O novenário era coroado com uma missa solene, no dia 28 do referido mês. Assim, explica-se a centenária festa do Sagrado Coração de Umarizal, em setembro. Acrescente-se a esta motivação histórico-religiosa o período da safra nos sertões nordestinos, perdurando até o último trimestre do ano. Isso facilitava os festejos do padroeiro, pois proporcionava maior poder aquisitivo à população. Bíblica e liturgicamente o Coração de Jesus é a expressão do amor misericordioso, da solidariedade e ternura de Cristo. “Vinde a Mim vós todos que estais sobrecarregados e eu vos aliviarei. Meu fardo é leve, meu jugo, suave.” (Mt 11, 29).
27/09/2021
Marcelo Alves
Um inimigo dos loucos
Henrik Ibsen (1828-1906), o genial dramaturgo, nasceu numa pequena vila portuária da Noruega. Mas o seu teatro (ele foi também diretor) e a sua poesia não mimetizaram a gelidez da sua terra natal. Ao contrário, ele foi um dos precursores do realismo e do modernismo nas artes cênicas. Fez escândalo, na verdade. Era um “denunciante” de falsos moralismos e coisas que tais. Algumas de suas peças são conhecidíssimas: “Peer Gynt” (1867), “Casa de Bonecas” (1879), “Um Inimigo do Povo” (1882), “O Pato Selvagem” (1884) e por aí vai. Alguns dizem ser ele, no seu métier, o segundo, apenas atrás de Shakespeare (1564-1616). E gigantes do teatro, gente como Gerhart Hauptmann (1862-1946), George Bernard Shaw (1856-1950), Oscar Wilde (1854-1900) e Eugene O’Neill (1888-1953), lhe pagaram tributo. Ibsen perambulou muitos anos pela Europa. Sobretudo pela Itália e Alemanha. Quem viaja, se sabido, enxerga longe. Faleceu, em glória mas já inválido, na capital Oslo.
Para se ter uma ideia do tamanho de Ibsen, colho um trecho do “Ensaio sobre Henrik Ibsen”, de Otto Maria Carpeaux, que consta de um pequeno livro de bolso, intitulado “Seis Dramas” (parte 1), coleção “Mestres Pensadores”, da Editora Escala: “Henrik Ibsen é o maior dramaturgo do século XIX. O superlativo – superlativos têm sempre qualquer coisa de exagero – justifica-se desta vez, com toda facilidade. Goethe, Schiller e Alfieri pertencem inteiramente, ou pela maior parte da obra, ao século XVIII; Tchekov significa um crepúsculo melancólico; Strindberg já é o século XX. E na época entre o começo e o fim do século? Os epígonos não contam; a glória do teatro romântico francês já passou. Kleist, Georg Buechner e Gogol, três gênios dramáticos, que não se realizaram inteiramente. Quem há mais? O teatro realista francês, Augier, Dumas Filho, só tem hoje interesse como precursor de Ibsen, que lhe tomou emprestados os processos cênicos e os ambientes burgueses; Hauptmann e Shaw já confessam que o próprio Ibsen foi o ponto de partida das suas obras. Ficam ainda dois grandes nomes: Hebbel e Bjørnson. Em Hebbel a crítica literária reconhece hoje a substância ibseniana, prejudicada pelos artificialismos do epigonismo classicista; Hebbel desapareceu do palco onde apareceu Ibsen. Bjørnson, o patrício de Ibsen, e seu companheiro e inimigo inseparável durante a vida inteira, empalideceu cada vez mais ao lado do rival maior; dia virá – já veio talvez – em que a vida e a obra de Bjørnson servirão apenas para esclarecer melhor a vida e a obra de Henrik Ibsen”.
O genial dramaturgo participa de todas as virtudes (e dos defeitos também, claro) do seu século. Um século, o XIX, que se orgulhava de ser o “século da ciência e da técnica”. Ibsen se preocupava com as descobertas da ciência, com as maravilhas e as angústias que os processos científicos provocam, e tinha a esperança, em razão das intervenções da ciência, num futuro melhor para a humanidade. E aqui jogo luz sobre a peça “Um Inimigo do Povo”, de 1882, cujo protagonista é um médico local que casualmente descobre e investiga a contaminação das águas de um balneário de uma pequena cidade norueguesa. O médico imagina ser aclamado por haver descoberto, através da ciência, a verdade. Por salvar a todos, locais e turistas, da infecção/doença generalizada. Mas “algo” fala mais alto. Do negacionismo a outros interesses menos confessáveis. Os habitantes se viram contra ele, o “inimigo do povo”. E a desgraça, individual e coletiva, está feita. Pelo menos para os de bom-senso, lembrando que a ciência, dizia o nosso Rubem Alves (1933-2014), nada mais é que o bom-senso organizado.
Se evitar contaminação e doenças parece bom-senso – pelo menos para os de bom-senso –, isso não se mostra tão óbvio para aqueles outrora chamados de fanáticos loucos, e hoje, eufemisticamente, apenas apelidados de negacionistas. Se na fábula de Ibsen foi assim, hoje, quem alerta para a gravidade da nossa situação sanitária, para o número absurdo de mortes, para o charlatanismo de remédios ineficazes, para o impacto atual e futuro da política/visão negacionista, inclusive sob o ponto de vista econômico, é taxado por alguns de torcer pelo “quanto pior, melhor”, pelo “vírus” ou de outras baboseiras/loucuras mais. É luta.
Afirmar a dura verdade e a ciência, ou simplesmente o bom-senso organizado, nos torna “um inimigo dos loucos”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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21/09/2021
Marcelo Alves
Embora seja sua face mais brilhante, no que toca à presença do direito, não é só de Franz Kafka (1883-1924) e do seu “O processo” (1925) que é feita a literatura em língua alemã. Outros rostos devem ser iluminados, como o de Jakob Wassermann (1873-1934), em especial pelo seu romance “O Processo Maurizius” (1928).
Jakob Wassermann nasceu em Fürth, cidade industrial próxima de Nuremberg, na Alemanha. Era filho de modestos comerciantes judeus. Abandonou o comércio e foi viver sua juventude aventureiramente. Começou a escrever artigos, contos e pequenas novelas. Era um democrata. Como judeu, sofreu bastante com o antissemitismo da época. Com o nazismo, foi para o exílio, sendo também destituído de sua cadeira na então Academia Prussiana de Letras. Faleceu em Alt-Aussee, na Áustria.
Wassermann é considerado um representante maior da ficção psicológica. Seu primeiro romance foi “Os Judeus de Zindorf”, de 1897, no qual ele trata da história judaica na Alemanha, o que vem, claro, a ser uma temática comum nos seus primeiros textos. Mas é sobretudo uma “segunda fase” na carreira literária de Wassermann que nos interessa, esta focada na relatividade e nos problemas da Justiça. Começa com “Caspar Hauser ou A Preguiça do Coração”, de 1900. E “Christian Wahnschaffe”, de 1918, obra já à moda de Dostoiévski (1821-1881), coloca seu nome definitivamente nos círculos intelectuais de então.
É dessa segunda fase, já em 1928, a sua obra-prima “O Processo Maurizius”, que, em síntese, cuida da estória de um erro judicial e do empenho de um jovem idealista (Etzel Andergast) para libertar o homem (um tal Otto Leonardo Maurizius, que dá título à obra) condenado injustamente, há quase duas décadas, à pena de prisão perpétua, pelo seu próprio pai (o íntegro promotor/magistrado Wolf Andergast). O jovem Etzel não admite o contraditório. Ele quer a justiça perfeita (e ela existe?) em lugar da justiça possível. E, sobretudo, sua luta padece de uma ilegitimidade original: sua motivação principal não é fazer justiça, mas se vingar do pai, a quem atribui os males do mundo, inclusive os padecimentos da mãe adúltera.
Para o direito, “O Processo Maurizius” é interessante por incontáveis aspectos.
De logo, segundo registra a minha edição do dito cujo (Abril Cultural, 1982), “o romance constitui um soberbo retrato da época da República de Weimar”, e sabemos nós a importância dessa república na história do direito, sobretudo pela sua célebre Constituição, tida pioneira na previsão dos direitos fundamentais sociais e cujo legado acabou se espalhando mundo afora.
Ademais, é obra inspirada por um grande senso ético e de Justiça (perfeita ou imperfeita). Como anota Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em “A história concisa da literatura alemã” (Faro Editorial, 2013), trata-se de “um romance deliberadamente tendencioso, ético, como o são de tendência ética todos os grandes romances da literatura universal”. E mais: “Der Fall Mauritius [seu título no original] precede por pouco a ruína da sociedade alemã pelo nazismo”.
Não obstante as nuanças da trama, sobretudo as motivações e intransigências das personagens, “O Processo Maurizius” deve ainda ser interpretado como uma advertência – e mais do que isso, como um libelo – contra o erro judiciário, que é tão desprezado por um certo grupo de pessoas, sejam juristas ou só idiotas da aldeia, que passam a vida ruminando ódio. Erro judicial, proposital ou não, isso não importa, devemos repeli-lo, já que ninguém – ninguém mesmo – deve ser condenado, assim privado de sua liberdade, ainda mais levado à morte (da qual, que eu saiba, não há volta), injustamente.
Por fim, de interesse mais geral, temos os aspectos geracionais e os motivos psicológicos que condicionam a trama/processo, condições que o autor conhecia e fabulava tão bem. Duas mentalidades. Duas motivações. Duas faces da Justiça? Dois direitos? E tudo forjado por um drama familiar na forma de diversos conflitos. Mas isso aí já lembra outro grande russo, Tolstói (1828-1910), e a sua Ana Karênina (1877): “Todas as famílias felizes são iguais, mas as infelizes o são cada uma à sua maneira”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
A DANÇA DEMOCRÁTICA
Diogenes da Cunha Lima
Não vou tratar da dança política que, geralmente, é feia, sem graça. Cuido de autêntica dança, verdadeiramente popular, participativa, que expressa a identidade nordestina, brasileira. A Ciranda Nordestina acaba de ser reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo Instituto Histórico do Patrimônio Nacional- Iphan. A decisão baseou-se em primorosa resenha de pesquisadores da Instituição e da exata relatoria da Conselheira Ângela Gutierrez.
A ciranda tem a sua primazia pernambucana, brilha também na Paraíba e em Alagoas, mas se manifesta em diferentes modalidades de ritmo e melodia nos demais estados nordestinos.
A nossa ciranda tem origem portuguesa e chegou aqui, no início do século XIX, trazida pela Corte Real. Em Portugal, inicialmente, não era uma dança de roda, mas em fila com dançarinos infantis. Os cortesãos dançaram suas lembranças afetivas.
É dança de roda em que os participantes se dão as mãos e movimentam-se ao ritmo de variados instrumentos de percussão: zabumba, ganzá e caixa. Às vezes, soam triângulos, pandeiros e raramente sanfona e instrumentos de sopro. É canto, dança e palavra. As pessoas entram na roda e saem dela à vontade. Não há vestimenta especial. Os passantes são, normalmente, convidados a entrar na roda e ser bailarinos (há improvisos de passos e poemas). Canta um mestre: “Por isso, dona Rosa, /entre dentro dessa roda, /diga um verso bem bonito, /diga adeus e vá se embora”.
Semelha a sardana da Catalunha também dançada em roda na rua, musicada por instrumentos de sopro. A sardana migrou para as artes plásticas, como no famoso quadro de Henri Matisse. O nosso bailado também se trasladou aos melhores artistas plásticos.
O povo carece de alegria, divertimento. A dança é vadiação nas praias, na cidade, no campo. Em ciranda recifense, o cantor avisa: “Estou aqui pra vadiar”.
A Ciranda tem sido poderoso instrumento da educação. Pelo seu exercício nas escolas, as crianças aprendem a arte da convivência, além de música e poesia. É estimulada na sua afetividade e percebe o encanto da participação comunitária. Dançar junto é pertencer. A criança sente-se pertencer à terra comum, a nosso país. Porque cirandar é estar por dentro do seu grupo.
No Rio Grande do Norte, estado eminentemente musical, a ciranda multiplica-se em composições musicais.
A Missão de Pesquisas Folclóricas, inspirada em Mario de Andrade, registrou a presença da ciranda no Piauí, no Ceará e no Maranhão. E de outras danças populares. Já naquela época, ficou comprovado o acerto de Mario de Andrade: “O Brasil realmente não conhece a sua música nem seus bailados populares, porque, devido a sua enorme extensão e regiões perfeitamente distintas umas das outras, ninguém se deu ao trabalho de coligir essa riqueza”.
Não distinguindo a condição social, cor, sexo, idade de seus múltiplos participantes, a Ciranda é prova da vocação democrática do Brasil.
O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa
Padre João Medeiros Filho
Há algumas semanas, foi lançada a sexta edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – VOLP, atualizando as palavras do idioma nacional e sua grafia, somando agora 382 mil verbetes. A publicação anterior – que data de 2009 – voltava-se especialmente para a escrita correta das palavras, em obediência ao Acordo Ortográfico Internacional, firmado pelas nações integrantes da comunidade de língua portuguesa. A atualização revela a dinâmica do vernáculo e a inclusão de neologismos úteis aos lusófonos brasileiros. Demonstra o zelo da Academia Brasileira de Letras – ABL, como guardiã da língua pátria. Houve acréscimo de mais de mil novos vocábulos ao português que falamos e escrevemos. Desde a quinta edição, a equipe do filólogo Evanildo Bechara – coordenador da Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL, responsável pela redação do trabalho – vinha se dedicando a reunir novos termos (e significados), colhidos em textos científicos, literários e jornalísticos. Houve também sugestões enviadas por linguistas. Não basta o surgimento de uma palavra para que ela seja automática e oficialmente incorporada ao VOLP. Para tanto, necessita ganhar consistência linguística, bem como ser compreendida e largamente usada.
Vários termos adicionados ao Vocabulário dizem respeito à Covid-19. Inegavelmente, a pandemia mudou a vida de muitos brasileiros, inclusive no emprego cotidiano de expressões. Além de palavras técnicas, geradas em decorrência do Sars-Cov-2, foram adicionados estrangeirismos, como “home office”, “lockdown” etc. De acordo com o professor Bechara, “nos últimos anos houve uma aproximação dos países, não só em termos políticos, sociais e econômicos, mas também por conta da pandemia.” Tal proximidade abriu a porta para o acréscimo de vocábulos, oriundos de vários idiomas, especialmente do inglês. Verifica-se o caso de “necropolítica” e “necropoder”, expressões cunhadas pelo filósofo camaronês Achille Mbembe.
O momento político vivido pelo Brasil gerou para o nosso idioma novas acepções de vocábulos, tais como: negacionismo, terraplanice, lacração, pós-verdade, invertida etc. Das pautas ideológicas – alheias à semântica latina e à história do vernáculo – vieram feminicídio (assunto abordado em artigo já publicado neste jornal) e sororidade, em oposição a fraternidade. No entanto, em latim, “frater” (do qual se origina fraternidade) não significa somente o consanguíneo masculino. Para indicar este familiar a genuína palavra latina seria “germanus”, originando em português irmão – “hermano”, em espanhol e “germain” (hoje pouco usual em francês) – do qual provém irmandade. Sororidade torna-se um termo redundante, por conseguinte, desnecessário, expressando mais uma carga ideológica do que semântica. O mundo digital legou-nos também criptomoeda e ciberataque. Eis apenas alguns exemplos de étimos incorporados ao VOLP.
Consoante os antropólogos, a sociedade é pautada pela cultura, que varia ao longo do tempo. Por vezes, surgem mudanças comportamentais e morais, modificam-se juízos de valor, influenciados pela tecnologia. A língua segue a cultura e tende a acompanhar as suas variações. Alguns períodos da história – como o que atravessamos – apresentam mais reviravoltas. Inegavelmente, há momentos de maior estabilidade, provocando menos novidade quanto à criação de termos. Há épocas caracterizadas por transformações bruscas. Nem sempre os étimos existentes descrevem acuradamente a realidade presente e vivida. Daí, a necessidade de criar vocábulos, importar ou ressignificar palavras antigas. Isto ocorreu, por exemplo, após a Primeira Guerra Mundial e, mais recentemente, com o advento da globalização, na década de 1980.
Causou estranheza a certos estudiosos do idioma nacional a demora em atualizar o Vocabulário. Argumentam que em doze anos de pós-modernidade muita coisa aconteceu. Verificam-se várias modificações individuais e sociais, causadas pelos avanços tecnológicos. Além das transformações sociopolíticas, vive-se uma transição do modelo de sociedade industrial para uma pós-industrial, desencadeando uma alteração estrutural bem mais profunda. A variação nos padrões éticos ocasionou situações difíceis de descrever pelas terminologias vigentes. Isso repercutiu sobre a cultura e, portanto, sobre a língua. Sociólogos, cientistas políticos, jornalistas e antropólogos falam de uma ressaca da globalização, proporcionando o retorno de uma fase mais conservadora e nacionalista, enfatizando maior respeito e defesa de valores morais e culturais dos quais a língua é integrante. Dessa luta resulta igualmente uma alteração na linguagem acadêmica, social e religiosa. A palavra da Sagrada Escritura faz-nos refletir: “A língua tem poder sobre a morte e a vida!” (Pv 18, 21).
19/09/2021
Honras aos médicos
Daladier Pessoa Cunha Lima
Reitor do UNI-RN
O Conselho Regional de Medicina do RN prestou singular homenagem aos médicos que exercem a profissão e se mantêm inscritos no CRM, no mínimo, há 50 anos. Chamei de singular porque foi um evento inusitado, uma feliz ideia de prestar honras a quem dedicou ou ainda dedica uma vida inteira a esse ofício, que exige muito amor ao próximo e vontade de refazer alegrias e esperanças. Ao mesmo tempo, também pode-se chamar de homenagem plural, pois envolveu dezenas de nomes, porém, sem perder o valor intrínseco do mérito de cada um e do grupo como um todo. Aliás, esse Diploma pessoal de Honra ao Mérito pareceu até que contemplava uma corporação, dada a afinidade que unia os corações e as mentes dos agraciados, naquele instante solene, mesmo virtual, da entrega coletiva da láurea. Atente-se que essa distinção honorífica reveste-se de alto significado, porquanto foi uma concessão do órgão que assegura uma boa prática da medicina, valorizando aqueles que a exercem de forma ética.
O Cremern, em boa hora, escolheu o médico Gilmar Amorim para proferir a saudação aos homenageados, em nome do Conselho. Depois da saudação de praxe, quando referiu-se ao Presidente Marcos Jácome e aos Conselheiros Marcos Lima e Jeancarlo Fernandes, Gilmar expressou o reconhecimento público e a gratidão do Conselho a todos os médicos homenageados, e afirmou que o dia 31 de agosto de 2021 se transformou num marco especial, pois possibilitou o resgate de um preito devido a muitos heróis da medicina do RN. O brilhante orador, numa sutil alusão à vida desses médicos, citou o belo trecho do Sermão da Sexagésima Hora, do Padre Antonio Vieira: “As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o mundo”. Gilmar Amorim, então, concluiu: “Muito obrigado pela doação de suas vidas em benefício da coletividade”.
Na minha fala, aludi à dupla homenagem que recebera, uma pelo Diploma de Honra ao Mérito, a outra pelo convite para agradecer em nome do conjunto dos ilustres colegas. Referi-me a nossa bela profissão que tem a figura histórica de Hipócrates como símbolo maior, e ao primeiro dos seus famosos aforismos. A seguir, numa ênfase à grandeza da homenagem, voltei-me ao livro bíblico Eclesiastes, talvez o mais sábio ensinamento e a mais poderosa expressão da vida humana sobre a terra. Ao final, disse que aquela homenagem chegava no momento oportuno para resgatar e relembrar em cada um dos homenageados a certeza do dever cumprido, além do reconhecimento de quantos são testemunhas dos seus exemplos de amor à profissão, e citei alguns versos do Eclesiastes, entre os quais esses dois: “Há tempo de lutar e tempo de viver em paz. Há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu”.
Texto publicado na Tribuna do Norte, em 16/09/2021
Bom dia!
Tenho a satisfação de enviar aos confrades da ANRL o texto de minha autoria “Honras aos Médicos”, publicado em 16/09/2021, no jornal Tribuna do Norte. Daladier Pessoa Cunha Lima.
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