Escritores na polícia
Não faz muito tempo, eu escrevi aqui sobre Fiódor Dostoiévski
(1821-1881), Oscar Wilde (1854-1900) e o nosso Graciliano Ramos
(1892-1953), escritores que, por motivos diversos, passaram uma
temporada – uma penosa e longa temporada, sobretudo no caso do autor
russo – em cana. E registrei que os três colocaram no papel esse pedaço
de suas vidas, as injustiças e vicissitudes que então sofreram, o que,
de resto, é a única coisa boa que se pode tirar dessas tristes páginas
da história.
E trabalhando ainda na mesma temática, até para
poder escrever com alguma propriedade, andei consultando um livrinho
chamado “La polices des écrivains” (Éditions Horay, 2011), de Bruno
Fuligni, que adquiri faz algum tempo, em lugar agora incerto e não
sabido.
“La polices des écrivains” confirmou uma ideia que eu já
tinha: escritor é bicho assaz “confusento”, metendo-se, com frequência e
indevidamente, com a polícia. Se às vezes é por algo mais banal, como
uma boa bebedeira, outras vezes, a coisa é, digamos, mais séria.
Em “La polices des écrivains”, que foca nos escritores franceses ou que
viveram na França, temos histórias ou dossiês de gente como o grande
Victor Hugo, passando por Alexandre Dumas, o filho (que fique claro,
para não mancharmos a reputação do pai dos três mosqueteiros), pelos
surrealistas André Breton e Jacques Prévet, chegando ao existencialista e
superchato Jean-Paul Sartre (embora ser chato não seja ainda motivo
para prisão, infelizmente).
Por motivos distintos, achei bem
interessantes os dossiês a respeito de Paul Verlaine (1844-1896) e
Arthur Rimbaud (1854-1891), Ivan Turguêniev (1818-1883) e Émile Zola
(1840-1902).
Sobre os poetas Verlaine e Rimbaud, que foram
amantes, é muito interessante a correspondência “confidencial”, de
novembro de 1882, do Procurador-Geral de então ao Prefeito de Paris,
descrevendo o conhecido episódio dos tiros desferidos pelo primeiro no
segundo, no já distante ano de 1873. Na ocasião, após uma coabitação em
Londres, o jovem Rimbaud, com apenas 19 anos, havia rompido com
Verlaine. Este se desespera. Bêbado, vai à loucura. Em um hotel de
Bruxelas, Verlaine “estava armado com um revólver. E ele implorou a
Rimbaud para não deixá-lo. Recebeu uma recusa obstinada. Exaltado,
desesperado, Verlaine apontou para o amigo e atirou, atingindo-o no
pulso”. Confusão dos diabos, para dizer o mínimo. Verlaine é condenado a
dois anos de prisão pelo Tribunal Correicional de Bruxelas, sendo a
decisão confirmada pela Corte de Apelação, tudo no mesmo ano de 1873.
O dossiê do “niilista” Turguêniev é menos dramático, com certeza. Mas é
muito interessante, sobretudo porque repleto de preconceitos
ideológicos, políticos e de nacionalidade. Um relatório da “Préfecture
de Police” de Paris, de janeiro de 1887, sobre o Sr. Tourgeneff, Yvon,
com cerca de 50 anos de idade e celibatário, afirma: “Em resumo, resulta
das informações colhidas que o Sr. Tourgeneff é, em política, um
revolucionário convicto, partidário absoluto das doutrinas de Bakunin,
que ele certamente deve propagar tanto quanto possível, sobretudo entre a
juventude russa que vive em Paris”. Alguma coincidência com as
paranoias do nosso presente?
Por fim, o caso de Émile Zola. O
dossiê do criador da saga “Les Rougon-Macquart” (composta de vinte
romances, para quem não sabe), é simplesmente “monumental”, segundo
registra “La polices des écrivains”. A maior parte do material, claro,
está relacionada ao caso Dreyfus e, em particular, ao processo do
“J’acusse!”, dos quais Zola é certamente protagonista. E aqui, dos
arquivos, destaco um relatório sobre a morte do grande naturalista,
acontecida na noite entre 28 e 29 de setembro de 1902, alegadamente de
asfixia acidental por monóxido de carbono. Em 1º de outubro de 1902,
relata o Comissário de Polícia responsável ao “Préfet” da Polícia de
Paris: “A autópsia realizada ontem, 30 de setembro, pelos médicos
Thoinot e Vibert, legistas, estabeleceu claramente as causas da morte
como devidas (por asfixia acidental) ao monóxido de carbono. O Sr.
Girard, médico do Laboratório Municipal, que examinou as amostras de
sangue colhidas do falecido, da Sra. Zola e do cachorrinho, já havia
descoberto no exame espectrográfico a presença desses traços de monóxido
de carbono tanto no sangue do marido como nos sangues da esposa e do
cão”. Está aí a versão oficial das autópsias de Zola e família
(incluindo o seu cãozinho, curiosamente). Mas acredito que as
circunstâncias desse “acidente” nunca foram totalmente investigadas. Eu,
pelo menos, embora pouquíssimo afeito a teorias conspiratórias,
continuo encafifado com a coisa.
Bom, pelo exposto, de minha
parte, embora escreva aqui aos domingos, não quero me meter em confusão
alguma com a polícia. Seja daquelas graves (tiros, asfixias, revoluções
etc.) ou mesmo por simples bebedeira. Prometo até tornar-me abstêmio, se
for o caso. Apenas, a exemplo do Santo e Bispo de Hipona, rogo não
precisar pagar essa pequena promessa já agora.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP