O grande francês
Mestre em Direito pela PUC/SP
Dentre os juristas franceses do passado, um papel de absoluto destaque
deve ser dado a um magistrado e professor de Orleans: Robert-Joseph
Pothier (1699-1772). Pothier é, de fato, um forte candidato a maior
jurista da França.
Pothier nasceu (no seio de uma família
burguesa) e viveu toda sua vida em Orleans. Seu avô e seu pai haviam
sido magistrados (conselheiros) nessa agradável cidade do norte da
França, outrora libertada do jugo inglês pelas mãos de Santa Joana d’Arc
(1412-1431). Ali Pothier também exerceu, por mais de cinquenta anos, o
mesmo cargo de conselheiro no “Présidial” da cidade. A partir de 1749,
foi também professor de direito francês da prestigiosa Universidade de
Orleans.
Magistrado e professor até seus últimos dias, Pothier
escreveu e publicou abundantemente. Era infatigável. “Um beneditino do
direito”, como chamaram, poeticamente, os autores do “Dictionnaire
historique des juristes français (XIIe-XXe siècle)” (publicado pela PUF –
Presses Universitaires de France, sob a direção de Patrick Arabeyre,
Jean-Louis Halpérin e Jacques Krynen, em 2007). Produziu, como era de
praxe à época, “Comentários” aos costumes de sua cidade. Sua obra de
maior destaque é, sem dúvida, as “Pandectae Justinianae in Novum Ordinem
Digestae”, publicadas entre 1748-1752, mas que lhe tomaram, de
trabalho, pelo menos vinte anos da sua vida. Mas ele também publicou
inúmeros tratados sobre o que hoje chamamos de direito civil (sem
prejuízo de haver escrito sobre outros ramos do direito de então).
Na verdade, se as “Pandectae Justinianae in Novum Ordinem Digestae”
podem ser consideradas a obra-prima de Pothier, a fama desse grande
francês deve-se mesmo, como lembra Antonio Padoa Schioppa (em “História
do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”, edição da
WMF Martins Fontes, 2014), “aos numerosos tratados de direito privado –
sobre a propriedade, sobre os direitos régios, sobre as sucessões, sobre
as obrigações, sobre a venda, sobre a locação, sobre o câmbio, sobre o
matrimônio e outros temas mais – nos quais soube conjugar de modo
magistral a disciplina do direito comum de vertente romanística com os
mais válidos elementos de tradição consuetudinária francesa”. A obra de
Pothier, diz-se, praticamente condensa e torna acessível ao público a
quintessência do pensamento jurídico do “Antigo Regime” de então.
Mas não é apenas o conteúdo dos escritos que explica o sucesso de Pothier. É, também, uma questão de escolha e de estilo.
Pothier era um homem muito culto, familiarizado com a literatura e as
instituições da Antiguidade clássica. Era um romanista. Todavia, como
lembra Paulo Jorge Lima (no seu “Dicionário de filosofia do direito”,
publicado pela editora Sugestões Literárias em 1968), à semelhança “de
vários outros famosos jurisconsultos dos séculos XVII e XVIII, procurava
conciliar a tendência historicista e excessivamente teórica da Culta
Jurisprudência do Renascimento com as questões da prática jurídica,
contribuindo, através de uma construção de caráter normativo, para a
formação da moderna ciência do Direito”. O ecletismo e a pluralidade de
fontes de Pothier, condensando as diferentes correntes do pensamento
jurídico de então, são amplamente reconhecidas, e isso já explica, em
parte, o sucesso de sua obra.
Doutra banda, deve ser enfatizada a
acessibilidade do seu estilo de escrita. Como anota o já citado Antonio
Padoa Schioppa, “os dotes de clareza, a utilização castiça da língua
francesa, a tentativa simplificadora e unificadora de suas análises
destinadas não tanto à ciência, mas à prática do direito e a sua
aplicação explicam não apenas a grande e duradoura acolhida de seus
tratados, mas também o fato de os codificadores napoleônicos terem se
inspirado neles em grande medida, mesmo sendo anti-histórico considerar
Pothier (assim como, com mais razão, Domat) uma espécie de codificador
‘ante litteram’ ou também simplesmente um potencial reformador. Seus
tratados sobre as diferentes partes do Direito Civil influenciaram a
feitura do Código de Napoleão”.
Diz-se – e li isso no
“Dictionnaire” acima referido – que “ao menos um quarto dos artigos do
Código provêm de Pothier”, reinterpretando suas lições ou mesmo
reproduzindo, textualmente, suas opiniões. Não posso confirmar essa
conta. Mas que Pothier pode ser considerado como um dos “pais do
Código”, isso eu garanto.
E a coisa não para por aí. Pothier
foi muito reeditado. Em vida e depois da sua morte. De forma condensada,
como no conhecido “Pothier des notaires”. Ou em edições de suas obras
completas, em vários volumes, sobretudo no decorrer do século XIX. Para a
felicidade dos que vieram depois e dos que moravam ou moram longe da
sua Orleans. Como registra o já citado “Dictionnaire”, “sua influência
não restou limitada à França: ela acompanhou, talvez precedeu, a difusão
do Código pela Europa napoleônica, na Itália, na Alemanha, nos Países
Baixos, na Polônia, pela península ibérica onde várias de suas obras
foram traduzidas para o espanhol e para o português; e mesmo além, pois
essa influência foi exercida em todos os países do mundo onde, durante o
século XIX, se fez sentir a influência intelectual do direito francês,
até no Japão, na Argentina e nos países do Common Law, na Inglaterra e
nos Estados Unidos, onde o Tratado das Obrigações, traduzido para o
inglês, conheceu várias edições”.
Eu mesmo, na época em que
estudava o direito civil com alguma profundidade, ouvi muito falar de
Pothier. Bons tempos de bacharelado na UFRN e de mestrado na PUC/SP.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCLMestre em Direito pela PUC/SP