28/06/2019


HOSPITAL SAMARITANO

Valério Mesquita*

O Hospital Infantil foi criado em 1917, pelo Dr. Manoel Varela Santiago, com atendimento ambulatorial às crianças do Rio Grande do Norte, principalmente de baixo poder aquisitivo. Antes da sua morte, o dr. Silvio Lamartine assumiu a direção do hospital, permanecendo nessa função por mais de 30 anos. Nos últimos anos o “Varela Santiago” ganhou significativo impulso, diversificando e ampliando o seu atendimento, através de mais de vinte especialidades, assistindo uma média de oito a dez mil crianças por mês. As suas UTIs, encontram-se permanentemente lotadas. Sobrevive com a contribuição de algumas empresas, convênios com o governo do estado e com a ajuda financeira de pessoas que conhecem e acreditam na seriedade do trabalho desenvolvido pelo médico Paulo Xavier, seu atual diretor.
Trata-se do único hospital pediátrico do Rio Grande do Norte que atende exclusivamente através do programa SUS. Ou seja, o SUS é porta única para se ter acesso ao mesmo. Caso raro, que merece não só o aplauso do povo norte-riograndense, mas, de igual forma, a plena aprovação ao trabalho do grande profissional e magnífico ser humano  - Dr. Paulo Xavier – que ali tem transformado os seus dias, em exercício de doação e permanente lição de amor.
A saúde do Rio Grande do Norte vive uma quadra difícil de sua existência. O exemplo impactante é a situação do Walfredo Gurgel, mais conhecido como o “hospital dos mártires”, onde os doentes continuam jogados nos corredores. O Walfredo Gurgel não estaria sendo vítima da “ambulancioterapia” dos municípios interioranos? Por que não equipar e ampliar a estrutura de atendimento dos hospitais públicos da grande Natal para absorver essa clientela e livrar o Walfredo Gurgel desse fluxo de interminável agonia?
Cito o Walfredo Gurgel porque me parece que os problemas de saúde não estão sendo tratados com racionalidade e disciplina. Digo, melhor: falta uma política descentralizada e investimentos maciços na área da saúde. Como, um único hospital pediátrico que atende somente pelo SUS, da rede privada, consegue equalizar, sistematizar e manter a sua qualidade de atendimento, como vem procedendo o Varela Santiago? Acrescente-se aí um dado importante: a demanda de pacientes que recebe do interior e da capital é geometricamente crescente porquanto a população infantil desassistida tornou-se incalculável. Você conhece, por dentro, a ala das crianças que padecem de câncer? Eu vi e não pude controlar a emoção e um quase desespero.
Foi aí que me lembrei dos que moram em mansões e palacetes de luxo, que vivem uma vida de dissipações com gastos supérfluos achando que nunca adoecerão. Veio-me à cabeça um evento como o carnatal onde os promotores ganham rios de dinheiro e não se sensibilizam em ajudar a criança cancerosa. Antes, as damas da sociedade e dos clubes de serviço promoviam chás e festas em benefício do hospital infantil. Hoje, pagam caro a vaidade social para exibir as suas futilidades e esquecem os inocentes pacientes portadores de tumores malignos.
Por isso, louvo e aplaudo, o trabalho do Dr. Paulo Xavier e toda a sua equipe de auxiliares que mantêm acesa a chama votiva do ideal hipocrático de Manoel Varela Santiago e seu sucessor Silvio Lamartine. Não significa dizer, com efeito, que o Hospital Infantil é auto-suficiente e já dispensa ajudas. Absolutamente. O condão do meu reconhecimento tem o objetivo de registrar e agradecer as vidas salvas de milhares de crianças ao longo do tempo. E que a sociedade pode e deve ampliar esse apoio, esse auxilio, porque o Hospital Infantil Varela Santiago é um patrimônio de Natal e do Rio Grande do Norte. Meu Deus, o que seria das crianças pobres se ele não existisse!!

(*) Escritor.     

24/06/2019

O inventor
Existem alguns candidatos a pioneiros daquilo que hoje chamamos de ficção policial/detetivesca. O inglês William Wilkie Collins (1824-1889), autor de “The Woman in White” (1860) e de “The Moonstone” (1868), sobre quem já escrevi aqui, é um deles. O estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849), um dos maiores contistas da literatura universal, sobre quem também já tratei aqui (e, neste caso, várias vezes), é outro forte concorrente.
Há, entretanto, um candidato menos conhecido, mas que talvez mereça, de fato, o título convencional de pai da criança: Émile Gaboriau (1832-1873).
Para quem não sabe, Émile Gaboriau nasceu na pequena comuna de Saujon, no sudoeste da França, em 1832. Criança, na companhia dos pais, viveu em diversas localidades da França. Jovem adulto, pouco interessado nos estudos formais, exerceu várias profissões. Foi escriturário, militar e deu aulas de latim. Já mais velho, retomou os estudos, em medicina e em direito. Foi ser secretário de várias personalidades, em especial, para sua carreira, do prolífico romancista Paul Féval (1816-1887). Assim Gaboriau descobriu o jornalismo. De jornalista a escritor de ficção, sobretudo de romances, publicados em formato de folhetim, foi um passo. “L'Affaire Lerouge”, de 1866, talvez seja o seu mais afamado romance. Muito badalados também são “Le Crime d'Orcival”, de 1867, e “Monsieur Lecoq”, de 1869. Gaboriau, aliás, é o criador do Monsieur Lecoq, um detetive ficcional que trabalhava na antiga Sûreté (hoje Police Nationale) francesa. Gaboriau e o seu detetive, isso é importante registrar, tiveram grande influência sobre Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) e, por consequência, na construção do mais famoso dos detetives da ficção, o impagável Sherlock Holmes. O criador do Monsieur Lecoq faleceu em Paris, em 1873, de problemas pulmonares.
Mais do que ser um dos pioneiros da ficção policial/detetivesca, Émile Gaboriau talvez tenha sido um dos pioneiros – ou mesmo, o inventor – de um gênero ou subgênero de literatura ainda mais específico, o dos “romances judiciários”, que, publicados nos folhetins dos jornais da sua época, causaram sensação. Nessas estórias, a personagem do criminoso é geralmente eclipsada, dando-se protagonismo ao investigador arguto e genial ou mesmo a uma complicada instrução judiciária na qual, em meio a uma equivocada acusação a um inocente, se procura descobrir o verdadeiro culpado. O grande público adorou. Virou até moda. Ganhou variações com o tempo. E, embora transformado e reinventado, chegou até nós.
Pelo menos é assim que pensa ninguém menos que o grande jurista, político e literato italiano Enrico Ferri (1856-1929), sobre quem também já escrevi aqui. Li isso não em sua famosa “Sociologia Criminale”, obra que, publicada com esse nome em 1892, fez de Ferri um dos luminares da Escola Positiva do Direito Penal. Mas, sim, no gostosíssimo “Os criminosos na arte e na literatura” (que possuo numa edição brasileira, de Ricardo Lenz Editor, de 2001), na qual o professor italiano afirma: “Émile Gaboriau foi o inventor de um certo gênero de romances judiciários, muito imitados depois, e muito em moda há alguns anos. (…). Nesta espécie de obras, o criminoso é quase sempre relegado ao segundo plano: ele figura como um acessório, um manequim necessário à representação de um crime misterioso, porque o verdadeiro protagonista é a polícia, o agente arguto, genial e sutilmente lógico, possuindo um faro especial para descobrir o criminoso, entre indícios vagos e insignificantes na aparência. Uma laboriosa instrução judiciária excita a atenção do leitor e mantém-no suspenso entre duas emoções diferentes: de uma parte, a fina clarividência de um agente decidido a procurar um culpado; doutra parte, a perseguição dolorosa de um inocente atirado, pela falsa manobra de um silogismo inicial, à inexorável engrenagem de um processo criminal. O esboço é quase sempre o mesmo: a polícia descobre um crime e um dos agentes, mais avisado que os outros, em vez de julgar segundo a aparência e a verosimilhança, chega, por indução, a encontrar uma pista segura. Então, graças aos indícios reveladores que escapam à crítica superficial de seus colegas, ele chega, através dos tortuosos meandros da verdade, a colocar as mãos sobre o culpado”.
E é o mesmo Ferri que nos explica a relação entre a ficção e a realidade judiciária: “Os dramas judiciários apresentam-nos um gênero análogo ao destes romances: têm também por assunto a descoberta de um delinquente, quase sempre um assassino, e excitam a emoção, mostrando-nos um erro judiciário mais ou menos definitivo e o embaraço dos indícios criminais nos episódios de uma vida normal”.
De minha parte, não tenho como afirmar, com 100% de segurança, quem foi mesmo o inventor dos tais romances judiciários. Mas, como já disse aqui certa vez, adoro essas estórias. Acho-as intrigantes e viciantes. E agradeço penhoradamente a Émile Gaboriau. Entretanto, muito mais gratos devem ser gente como Scott Turow (1949-) e John Grisham (1955-). Foi certamente subindo nos ombros do gigante francês, do século XIX, que esses americanos de hoje puderam enxergar e imaginar tão longe.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

20/06/2019





         Para o cristão, nunca é demais invocar as coisas divinas e comemorar as datas, os atos e fatos religiosos.

        Hoje comemoramos o Dia de CORPUS CHRISTI, ou seja do Corpo de Cristo para celebrar o mistério da eucaristia, o sacramento da transubstanciação, dogma católico que representa a presença do corpo e do sangue de Jesus na hóstia e no vinho.

      A palavra hóstia é originada do latim, e é um sinônimo para a palavra vítima. Sendo assim, ela representa o próprio Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus que tirou o pecado do mundo, nos livrando de todos os nossos pecados.

      Com essa atitude, os católicos acreditam estarem recebendo essas dádivas.

              Por esse motivo, a data é registrada como a festa de Corpus Christi, que acontece sempre 60 dias depois do Domingo de Páscoa ou na quinta-feira seguinte ao domingo da Santíssima Trindade, quando Jesus instituiu o sacramento da eucaristia e como tal o povo de Deus enfeita as ruas, as igrejas e as casas.

        A festa do Corpus Christi foi instituída pelo Papa Urbano IV no dia 8 de setembro de 1264 e a procissão de Corpus Christi lembra a caminhada do povo de Deus, peregrino, em busca da Terra Prometida. O Antigo Testamento diz que o povo peregrino foi alimentado com maná, no deserto. Com a instituição da eucaristia o povo é alimentado com o próprio corpo de Cristo.

        Outras religiões cristãs não adotam esse ritual, o que em nada modifica o seu significado para a fé. A hóstia, eventualmente, pode estar representada no pão que se ofereça em determinadas circunstâncias incomuns, desde que o gesto envolva o sentimento sincero da invocação do Cristo.
        Sirvo-me da data Santa para relembrar a fé inquebrantável da minha inesquecível Therezinha, que nunca descurou de comemorá-la com extremo amor e devoção. A ela, in memoriam, entrego o Corpo Santo do Nosso Senhor, ansiando que esteja sob a sua proteção e interceda pelos que aqui ficaram. Um beijo saudoso do seu esposo Carlos Roberto de Miranda Gomes. AMÉM.



NÃO PRECISA SER PROFETA

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

Determinismo histórico dizem que existe. Há dezenas de casos na política brasileira. Nunca foi tão fácil adivinhar a destruição do nosso planeta, num futuro não muito distante, vítima da poluição da atmosfera, dos mares e da natureza. Prever a paz na África e no Oriente Médio, por exemplo, é mero exercício de retórica. A gênese da questão palestina não é territorial, apenas, mas religiosa; desde o tempo do sultão Saladino e as Cruzadas do Vaticano. Óbvio ululante. Profecia é coisa séria. O dom de profetizar só ocorre com o apoio do Espírito Santo. Assim falou Malaquias. E antes dele, Zacarias, Ageu, Sofônias, Hebacuque, Naum, Daniel, Oseias etc., sem falar em Isaías, o maior deles. Não foram adivinhos mas profetas de verdade.
Após essa viagem de circunavegação polar em torno do assunto, chego a Natal, a cidade dos Reis Magos, adventícios, visionários, adivinhos e proficientes. Não se torna necessário recorrer a eles para distinguir ou antever nada em Natal. Se assim fosse, eles teriam se estabelecido nas Rocas e deixado uma banca invejável de cartomantes e curadores. Baltazar, Gaspar e Belchior ficaram mesmo perdidos no deserto das Arábias em vez das dunas da Redinha.
Não precisa ser profeta para chegar à conclusão que não emplacará 2019 sem que as avenidas de Natal se tornem intransitáveis. O número de veículos que circula já é maior, hoje, que a capacidade de sua malha viária. Estão financiando carros para pagar em sete anos (oitenta e quatro meses). Qualquer pessoa, com apenas um salário, sai de uma loja ou concessionária, sem avalista, lenço ou documento, dirigindo por aí. Quando acontecer uma crise econômica no país, quem vai para o beleléu: a financeira ou a seguradora? Já prevejo filas de carros abandonados nas vias públicas por inadimplentes enlouquecidos. Não desejo que isso ocorra mas o calote vai ser geral. Já imaginou uma entrada de vinte por cento no valor do bem e somente pagar a primeira prestação em 2020? É caso de B.O (Boletim de Ocorrência).
Outro tema para o qual não se exige douta profecia está nas religiões. Algumas modificam o cristianismo ao seu bel-prazer e conveniência. A boa nova para arrebanhar seguidores reside no apelo musical. A conversão está no tom. Jesus Cristo é fulanizado em forró, axé, lambada, brega, carimbó, swing e pagode. Em breve, em vez de MPB, surgirá a MPR (Música Popular Religiosa). Segundo os ruidosos desse mundo nada mais espiritual, após a palavra, que dançar um relabucho na igreja. Dizem eles que a unção é contagiante. Não precisa ser profeta para antever que essas religiões tendem a fazer desaparecer o Cristianismo. Não é por aí o caminho. Estão profanando o nome de Deus.

(*) Escritor.




O segundo primeiro retrato do Rio Grande do Norte

18/06/2019


Por Gustavo Sobral

O retrato da Fortaleza dos Reis Magos por Frans Post, século XVII, período holandês no Brasil, é considerado o primeiro conhecido, sabido e propagado do Rio Grande do Norte.

Acompanhando o conde Mauricio de Nassau, Post veio à fortaleza, provavelmente lá se hospedou, e traçou a cena que o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte reproduziu na capa da sua revista 97. Uma cópia, pois o original encontra-se no Louvre, em Paris. Mas não é a único.


Em visitas aos museus e instituições culturais no Recife, conversas e leituras sobre o período holandês, nas últimas semanas, revelou-se uma imagem esquecida, pouco conhecida por nós, que merece ser lembrada, porque pode ser considerada uma segunda reprodução de época sobre o Rio Grande do Norte: um outro retrato da fortaleza, também de autoria de um pintor holandês, o Gillis Peeters.


Há suspeitas que ou ele, ou um irmão, também pintor, aqui esteve, como Post, à serviço de Nassau. Informação até hoje não confirmada.


O que se sabe é que representações do Brasil holandês começaram a aparecer com a sua assinatura e a assinatura do irmão, o também pintor, Bonaventura (1614-1652).


 Dentre elas, uma de autoria de Gillis Peeters, em óleo sobre tela, de 89,5 x 130,5 cm, datada entre 1637 e 1650, designada “soi disant Forte dos Reis Magos”, e que se encontra mais perto do que imaginamos, no Palácio dos Bandeirantes, São Paulo.


Gillis Peeters nasceu e morreu jovem na Antuérpia (1612-1653), era pintor, e de uma família de artistas, e sua produção foi tímida. Restam, hoje, poucas obras suas em paradeiros identificados.


O Instituto Histórico e Geográfico local, por seu diretor de Biblioteca, Arquivo e Museu, André Felipe Pignataro Furtado de Mendonça e Menezes, entrou em contato com o Acervo Artístico Cultural do Palácio dos Bandeirantes para resgatar esta imagem que agora se apresenta e que para nós é tão cara, e tão antiga, quanto o Post que veneramos.

Para ler esse e outros escritos acesse www.gustavosobral.com.br

18/06/2019


A legitimidade das decisões judiciais (IV)

No artigo da semana passada, prometi encerrar esta minha série de artigos sobre a legitimidade das decisões judiciais tratando de dois pontos: a necessidade de que realmente fundamentemos as nossas decisões nas leis e na Constituição do país – e não naquilo que é a nossa convicção ou no que são os nossos pré-conceitos – e a questão final da aceitação popular propriamente dita das decisões judiciais.
Claro que não defendo a ideia, inspirada na lição de Montesquieu (1689-1755), de que o juiz não deve ser outra coisa senão a “boca que pronuncia as palavras da lei”. Isso seria a conduta de um mau juiz, não correspondendo aos fins do direito. E até acredito que uma neutralidade desse tipo seria mais aparente que real.
Na verdade – e isso já nos mostrou a turma do “realismo jurídico americano”, sobretudo Karl Llewellyn (1893-1962) e Jerome Frank (1889-1957) –, a decisão judicial é muito mais do que o resultado da simples aplicação de uma norma aos fatos do caso. Muito mais do que um silogismo, em que a premissa maior é a lei/norma, a menor é o fato e o corolário é a sentença. Primeiramente, a própria determinação, pelo juiz, de quais são e como são os fatos do caso acrescenta inúmeras variáveis a sua decisão final, assim como a interpretação da norma é algo muito mais complexo que uma simples releitura do seu texto, seguida de um processo analítico de subsunção. Além disso, os juízes decidem baseados numa variedade de fundamentos e apenas alguns deles são conscientes e analíticos. Alguns “fundamentos” da decisão judicial, que atuam previamente aos fundamentos conscientes e analíticos, são mais complexos e menos óbvios, extremamente influenciados pelos pré-conceitos do julgador.
Se isso parece fato – refiro-me ao que está por detrás do aparente silogismo –, o erro está em não se ter na lei ou nos precedentes, às vezes, nem minimamente, o correto freio/balizamento para a decisão judicial. O direito passa a ser simplesmente o que juízes e tribunais, individual e erraticamente, declaram e decidem.
Para suavizar essa dependência peculiar do juiz de si mesmo e de tudo o que compõe seu horizonte interpretativo pessoal, mecanismos e padrões de comportamento devem ser sempre pensados, criados e fomentados. Exigir o respeito aos precedentes. Dar maior dignidade à lei, tão amesquinhada nos nossos dias, é mais que fundamental.
Tenho até pensado, a partir de um texto que li faz muitos anos (“Uso do precedente no Código Civil da Luisiana”, de James L. Dennis, publicado na Revista de Direito Público – RDP, no ano de 1997), numa categorização das decisões judiciais levando em consideração a sua proximidade com a legislação (constitucional e infraconstitucional). Quanto maior a sua proximidade da lei, melhor. Se a decisão pode ser fundamentada estritamente numa norma ou dispositivo específico da legislação de regência, a isso deve-se dar preferência. Em segundo lugar, deve-se dar preferência a uma decisão baseada em outros dispositivos da lei que rege a matéria decidida (seja uma lei específica, seja um código). Em terceiro lugar, deve-se preferir a decisão que tenha fundamento em uma norma legal do sistema jurídico do país. E, em quarto lugar, somente na ausência de norma legal aplicável, é que se deve dar uma fundamentação principiológica, mais independente do direito legislado do país. Não tenho dúvida de que, quanto mais uma decisão judicial estiver constrita a uma norma legal específica, mais ela se coadunará com as diretrizes (ou vontade) do legislador. E, apesar de não ter ainda definido completamente essa minha categorização (estou pensando, ainda), tenho certeza de que o juiz brasileiro, como “rulemaker” provisório – e não como um igual ao legislador/“lawmaker” –, hoje mais do que nunca, deve ser incentivado a decidir em conformidade, o máximo possível, com a vontade ou diretrizes expressas do legislador (constitucional e infraconstitucional).
Definida essa premissa – de que as decisões judiciais devem se basear, no máximo grau possível, nas leis e na Constituição do país –, chego à questão da aceitação popular de tais decisões.
Não desconheço que a legitimidade das decisões judiciais está em alto grau relacionada à aceitação delas pela opinião pública. Há até quem simplesmente identifique uma coisa com a outra. Também já defendi aqui que a sociedade como um todo – além das partes, dos seus advogados e dos demais atores envolvidos na lide específica – é uma das destinatárias das motivações das decisões judiciais, podendo ela assim verificar se as decisões do Poder Judiciário são pautadas pelo direito ou se são fruto de arbítrio dos julgadores. E também reconheço que as decisões judiciais que ofendem o senso comum acabam, a longo prazo, não sobrevivendo ao tempo e à crítica geral.
Entretanto, se “a autoridade da Justiça é moral, sustenta-se pela moralidade das suas decisões”, como queria o nosso Rui Barbosa (1849-1923), se a “majestade dos tribunais assenta na estima pública”, como disse o mesmo Rui, penso que essa moralidade e essa estima têm de vir naturalmente, com o tempo e com o exemplo, e não como um fim em si mesmo.
Peguemos o exemplo da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, sempre bem-vindo. Desde o caso Marbury v. Madison, de 1803, já citado aqui, a U.S. Supreme Court tem conquistado e consolidado o reconhecimento de suas decisões não só pelos demais Poderes da Federação, mas, sobretudo, pelo povo americano, que a vê como o derradeiro baluarte em defesa dos seus direitos fundamentais. Mas isso tem sido progressivamente. E naturalmente.
Por fim, essas observações nos trazem de volta à necessária complementaridade entre o Estado de Direito e a democracia. Se a democracia é o governo da maioria, o Estado de Direito consagra a supremacia da Constituição e das leis do país e o respeito aos direitos fundamentais. A regra da maioria ou da democracia só se legitima se respeitados, na forma da lei e da Constituição, mesmo em desfavor da turba, os direitos de todos, inclusive os das minorias.
Reitero: não se deve simplesmente decidir em conformidade com a opinião pública. Nem muito menos manipulá-la! Pelo contrário, a maior legitimidade das decisões judiciais virá naturalmente se houver a obediência a determinados valores (estabilidade, previsibilidade, igualdade e celeridade), o respeito a uma teoria de precedentes vinculantes e com a expressa fundamentação destas decisões na Constituição e nas leis do país, fornecendo-nos, assim, uma Justiça verdadeiramente legitima e consensual.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP