29/10/2021
O BAR SEM NOME
Tomislav R. Femenick - Jornalista
Existia em São Paulo, na Rua Araújo, perto da Rua Major Sertório e da Av. Ipiranga, no Centro Histórico da cidade, um barzinho pequenininho, chamado “NN” (abreviação da expressão inglesa No Name: Sem Nome). Não havia nada escrito em sua fachada. Simplesmente era uma porta larga, aberta. Começava a funcionar às dez horas da manhã e só fechava quando o último freguês ia embora. Josias (não estou certo do nome) era o dono e o único funcionário; bar-tender, garçom, faxineiro e pau para todas as obras. Era um bar de homens. Quase nunca havia mulheres.
O ambiente era aconchegante. Sofás de couro, um defronte do outro, separavam suas seis mesas, o ar condicionado controlava a temperatura e um exaustor fazia o ar circular e retirava a fumaça dos cigarros, charutos e cachimbos. As paredes eram cobertas com lambris de madeira escura. Na parede, atrás do estreito e diminuto balcão, ficavam as garrafas de bebidas, sempre em número de três para cada tipo. Na parede do fundo havia um quadro da Rainha Elizabeth II, meio sorrindo, meio séria, com um selo dourado redondo, e um brasão com os dizeres: “By appointment to hm the queen” (por nomeação de Sua Majestade a Rainha). Perguntado sobre o quadro, ele desconversava e não dizia nada.
O mais importante era que seu whisky era honesto e os queijos, seu único tira-gosto, eram de boa procedência. Durante a tarde, recebia executivos de bancos, das empresas de turismo e viagens, dos inúmeros escritórios situados na redondeza, principalmente dos Edifícios Itália e os que ainda existiam no Copan. O maior movimento era na hora do happy hour. Fui levado ao NN pelos meus amigos Flávio Pacheco e José Pedro Canovas, na época em que éramos auditores na Deloitte-Revisora.
Tempos depois, já trabalhando no Banco Real, como Diretor Adjunto das empresas de seguro, recebi um telefonema de Antônio Sansão, Diretor Geral da organização (na verdade, ele era a segunda pessoa no comando do conglomerado financeiro dirigido por Aluysio Faria), pedindo para eu ir até sua sala, urgente, pois tínhamos um problema delicado para resolver. O problema: demitir (sabidamente por justa causa) um diretor das empresas de seguro do grupo, pessoa a quem eu era formalmente subordinado. O meu espanto foi autêntico.
Sansão explicou-me: Primeiro, ele daria a entender que a saída não seria só do diretor demitido, que haveria outras dispensas e que eu poderia ser atingido. Segundo, porque, devido à natureza do demitido, ele poderia ter uma reação indesejável e criar um clima que poderia contagiar outros colaboradores. E, terceiro, ele soube que eu conhecia um lugar adequado para isso. Um barzinho na Rua Araújo, do qual ele soubera por “por ouvir dizer”.
Chegamos ao NN por volta das três da tarde, conversamos e tomamos whisky honesto, com tira-gosto de queijos de boa procedência. A demissão aconteceu sem trauma e sem vexame. Saímos de lá perto do encerramento do expediente, pois ainda teríamos de dar ciência da solução do caso ao dr. Aluysio Faria.
No outro dia, ao chegar à minha sala, encontrei uma caixa de isopor, com oito embalagem de sorvete de dois litros, sabor chocolate com menta, da La Basque (que também era do dr. Aluysio), e mais 20 barras de chocolate belga, da Godiva. Presentes de Sansão, meu chefe ad hoc, e de todos os que trabalhavam no grupo; menos o mandachuva, é claro.
Passado um mês ou mais, voltei ao NN. Tão logo me viu, Josias veio ao meu encontro. Queria que eu lhe ajudasse a resolver um problema:
– Lembra daquela última vez em que você esteve aqui? Aquele senhor que estava ao seu lado pagou a conta. Acredito que aquele outro, que estava à sua frente, não viu e pagou de novo; deixou o dinheiro em cima da mesa. O que eu faço?
Tribuna do Norte. 27 out. 2021.
MACAÍBA: 144 ANOS DE EMANCIPAÇÃO POLÍTICA
Pesquisa e Texto de Valério Mesquita
e Anderson Tavares
Os núcleos populacionais mais antigos e conhecidos nas terras onde atualmente ergue-se a cidade de Macaíba foram o arraial e o engenho Potengi (Ferreiro Torto), o segundo da capitania do Rio Grande. Foi construído pelo capitão Francisco Rodrigues Coelho e o seu sócio, o vigário do Natal Gaspar Gonçalves da Rocha. Esse primitivo engenho, bem como o arraial, tiveram vida curta. Foram destruídos e o proprietário massacrado pelas mãos invasoras holandesas em dezembro de 1634.
Ato contínuo, tendo em vista a decadência da cidade do Natal, arrasada pelos batavos, estes subiram o rio Potengi e na confluência do rio Jundiaí foi fundado a Nova Amsterdã, a qual chegou a possuir a câmara dos escabinos cujos moradores viviam da pesca, da produção de farinha e do plantio de fumo.
Porém, a história oficial do município teve início em 1770, com a demarcação do sitio Coité pelo coronel Manoel Casado. Coité era uma árvore abundante na região que o coronel passou a criar e plantar em sua propriedade. Em 1850, passa a pertencer ao capitão Francisco Pedro Bandeira de Melo, cuja filha, D. Damiana Maria Bandeira, consorciou-se com o comerciante Fabrício Gomes Pedroza, morador no engenho Jundiaí.
Fabrício Pedroza, comerciante de alto prestígio e larga visão comercial, notando a boa localização do sítio do sogro, constrói o primeiro estabelecimento comercial à margem do rio Jundiaí , e numa cerimônia em 1855 no quintal do referido estabelecimento onde plantou duas macaíbas, muda o nascente povoado de Coité para Macaíba. E convida amigos comerciantes para instalar-se na localidade. Em 1870, o major Fabrício funda a casa comercial dos Guarapes, importadora e exportadora de produtos, direto do seu porto para os EUA e Inglaterra, com a mudança do velho para Rio de Janeiro: o negócio foi fechado e abalou a frágil economia provincial.
A freguesia foi criada pela lei n° 815, de 07 de dezembro de 1877, sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição, santos Cosme e Damião.
A lei provincial n° 801, de 27 de outubro de 1877, deu ao povoado da Macaíba o predicamento de vila, ganhando assim autonomia administrativa, sendo transferida à câmara municipal de São Gonçalo cujo presidente era o capitão Vicente de Andrade Lima. Outra lei provincial n° 1.010, de 05 de janeiro de 1889, elevou-a à condição de cidade.
Como distrito, ou termo judiciário, Macaíba foi elevada à categoria de comarca do Potengi pela lei provincial n° 845, de 26 de junho de 1882, suprimida, posteriormente, em 1898, restaurada em 1907, foi novamente suprimida em 1914, e afinal restaurada em 08 de abril de 1918.
Pioneira em vários aspectos, Macaíba libertou seus escravos em 06 de janeiro de 1888, tendo a frente deste movimento o comendador Umbelino Freire de Gouveia Mello, presidente da sociedade libertadora “Padre Dantas”. A primeira casa bancária do estado foi nesta cidade, fundada pelo deputado Eloy Castriciano de Souza, que financiava as safras de açúcar de grande parte dos municípios do Ceará-Mirim à São José, incluindo o vale do Cajupiranga. Sendo ainda a promotora do trabalho feminino no comércio, uma vez que o senhor Francisco Campos era auxiliado por sua esposa e as quatro filhas em seu comércio no ano 1924.
Macaíba hoje tem uma população de mais de 80 mil, uma área de 492 km, mais de 60 escolas públicas municipais, 04 distritos (Traíras, Mangabeira, Cajazeiras e Cana-Brava), 16 comunidades urbanas e mis de 30 comunidades rurais. Tem na mandioca sua agricultura de subsistência. Destacamos, ainda, a cultura do caju e a apicultura como meio de geração de emprego e renda, além da plantação do mamão na zona rural do município. Outro ponto importante para economia do município é a ascendente atividade da carcinocultura, destacando-se como um dos mais promissores do RN. No trinômio comércio, agricultura e indústria tem sua fonte econômica. O abastecimento de água é feito pela CAERN (Companhia de Água e Esgotos do RN) e a energia elétrica é de responsabilidade da COSERN (Grupo Neoenergia).
Faz fronteira com 08 municípios (Natal, Parnamirim, São José do Mipibú, Vera Cruz, Bom Jesus, São Pedro, lelmo Marinho e São Gonçalo do Amarante), 17 vereadores integram o poder legislativo municipal. FPM e ICMS são as maiores fontes da receita pública.
A população católica representa 73%, com cerca de 60 mil fiéis. A paróquia integra a Arquidiocese de Natal e a festa da sua padroeira é 08/12. As outras denominações religiosas são: a Igreja Assembléia de Deus, Igreja Batista de Macaíba e Batista da Convenção, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Presbiteriana, Igreja Deus é Amor, Igreja Pentecostal, Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Congregação Cristã no Brasil, Testemunhas de Jeová e Igreja Cristã em Células. Nos cultos de cultura Afro destacamos o terreiro de Dedé de Macambira, terreiro do Mosquito e terreiro de Paulo da Lagoa.
Macaíba localiza-se a 18 quilômetros de Natal e é cortado por duas BR's 304 e 226, e pela RN 160. Tem a melhor água da Grande Natal. Possui um distrito industrial composto por cerca de 20 empresas entre pequenas, médias e grandes (a Sam’s, Multidia, Coteminas, Coca-Cola, Rufitos, Tempreros Sandio, Argamassa Potengy, Center Massas, Água Mineral Cristalina, Água Mineral Riogrande, Águia Piscina), entre outras, e como órgão representativo da categoria patronal temos a ASPIM. CDL (Câmara dos Dirigentes Lojistas) e SindComércio (Sindicato do Comércio Varejista) são as entidades representativas do comércio local, com uma média de 2000 mil empregados diretos no ramo comercial em cerca de 400 lojas nos mais diversos ramos de atividade. A empregabilidade está no serviço público (três esferas), comércio, agricultura e industria.
Salve a data aniversária de 27 de Outubro e salve Macaíba enquanto é tempo!
(*) Escritor
26/10/2021
A DIVINA COMÉDIA VISTA DE NATAL
Diogenes da Cunha Lima
Nos 700 anos da morte de Dante Alighieri, o mundo intelectual festeja a sua obra. Não hesito em afirmar que, dentre os peritos literários, ele foi o favorito de Câmara Cascudo. O Mestre de Natal foi o primeiro tradutor de Walt Whitman, traduziu Montaigne e, para seu deleite, Shakespeare e Goethe. Apresentou e anotou Miguel de Cervantes e Luis de Camões.
“Dante Alighieri e Tradição Popular no Brasil” é paciente pesquisa sobre a criação desse homem de todos os tempos, conservando vivo em nossos hábitos, nossos gestos, em nossas palavras, segundo a expressão de Franco Jasiello, prefaciador da 2ª edição. Para Franco, o gênio atlântico e alísio tinha a primazia da intimidade com o gênio de Florença.
Imagine a minha emoção ao receber o exemplar, que assegura eu estar “inteiro e vivo no seu coração”. Sob a dedicatória, a assinatura de Luis da Câmara Cascudo.
Para Cascudo, Dante Alighieri é uma síntese genial da cultura erudita e da cultura popular. Tinha todo o conhecimento científico, filosófico e teológico da Idade Média. Também religioso, o etnógrafo do Brasil registrou a presença entre nós da consciência religiosa medieval.
A Comédia, denominada Divina por Boccacio, aborda o destino das almas: inferno, purgatório e paraíso. Nos dois primeiros, Dante é levado pela mão do poeta Virgílio. No paraíso, foi guiado por sua amada Beatriz (Virgílio não poderia entrar no céu por não ser cristão).
Dante, médico-enfermeiro, participou da política de Florença, integrando o grupo dos Gibelinos que propunha a limitação dos poderes dos papas. Os Guelfos, vitoriosos, condenaram o poeta ao exílio e à morte se voltasse à Florença. Assim, ele se refugiou em várias comunidades e terminou a sua vida em Ravena, que guarda como um tesouro os seus restos mortais.
Cascudo anota a curiosidade de que o sumo poeta vislumbrou três papas no inferno: Nicolau III, Bonifácio VIII e Clemente V. Mereceram o suplício eterno pelo desrespeito à função sagrada, vendendo o que seria destinado ao culto.
Câmara Cascudo observa a permanência, no Brasil, da Estrela do Destino, Lúcia (que entre nós é Santa Luzia) e ainda do golfinho, o boto que amava e seduzia até os rapazes, fingindo-se de moça.
As observações do nosso Mestre atingem limites não suspeitados. Registra a afirmação de Dante de que “o amor move o sol e as outras estrelas”. Destaca, também, que Dante encontrou poucas mulheres no inferno, raras no purgatório, mas muitíssimas no paraíso.
Em nosso tempo, é imprescindível ler os dantistas excelentes, como Marco Lucchesi, e reler a “Divina Comédia”, usufruindo dos seus cinco cantos e dos seus tercetos encadeados.
Marcelo Alves
As buscas
Stefan Zweig (1881-1942) foi outro grande nome das letras alemãs que viveu no Brasil (digo “outro” porque antes escrevi sobre Otto Maria Carpeaux). Zweig nasceu em Viena, judeu, filho de pais abastados. A educação, desde menino, foi “de primeira”. Cursou e doutorou-se em Filosofia. Ainda estudante, descobriu-se poeta, tradutor e biógrafo. Foi jornalista, dramaturgo e romancista/novelista. Durante a 1ª Guerra Mundial, foi viver na Suíça. Foi pacifista, no grupo de Romain Rolland, Hermann Hesse e James Joyce. Voltou à Áustria. Foi celebrado nas décadas de 1920 e 1930. Com a ascensão do cabo Hitler, foi viver em Londres. Conheceu o Brasil; prometeu voltar. Cumpriu tragicamente o juramento. É o autor do livro/elegia “Brasil, o país do futuro”. Publicado em várias línguas, é título famoso entre nós. Pena que nunca chegamos a esse futuro. Zweig tirou a própria vida (e a esposa também) em 1942, na melancólica Petrópolis, após um Carnaval mais melancólico ainda.
A obra de Zweig é vasta. É cumeada pelas novelas e biografias. Outro dia, adquiri “24 horas na vida de uma mulher e outras novelas” (Nova Fronteira, 2018), na qual Alberto Dines, o prefaciador (além de biógrafo de Zweig), afirma: “Amok, Carta de uma desconhecida, 24 horas da vida de uma mulher e Confusão de sentimentos, junto com as biografias de Maria Antonieta, Maria Stuart e Fouché, são os títulos mais lembrados da vasta obra do escritor austríaco até hoje, e não apenas pelas tiragens, mas porque foram adaptadas para o cinema americano e europeu”. Já que escrita no Brasil, à lista eu acrescento a autobiografia “O mundo que eu vi”, de 1942.
Mas, hoje, eu quero destacar apenas dois causos da saga de Stefan Zweig. Um é triste; o outro, espero, terminará bem (pelo menos para mim).
O causo triste é o destino do intelectual pacifista, Stefan Zweig, num mundo tomado pela barbárie do Nazifascismo. Quanto ao fim do escritor, anota Dines: “Desgostoso, Zweig aluga um chalé em Petrópolis para aguardar o fim da guerra [a 2ª Grande Guerra]. O desespero fabricado pela solidão e a angústia com o irresistível avanço nazifascista o derrubaram. A 22 de fevereiro de 1942, cinco dias depois do Carnaval, Stefan Zweig e a mulher suicidaram-se. O humanista não aguentou o espetáculo de insanidade que a barbárie hitlerista havia desencadeado. No repertório de suas paixões não foi incluído o radicalismo político”. No Brasil, Zweig buscava algo que, mesmo muitíssimo bem recebido, por autoridades e intelectuais, também não encontrou: a sua paz e a paz de todos (encontramos hoje?). E topou, mesmo aprendendo a amar o nosso país – vide sua carta de suicídio –, voluntariamente, com a “indesejada das gentes”.
O segundo causo é de outra natureza. É a minha busca por uma novela de Zweig, “O Mendel dos livros”, de 1929 (originalmente publicada no Neue Freie Press), que conta a história de um sebista judeu russo que tinha “escritório” em uma das mesas do Café Gluck, em Viena. A memória do livreiro era espantosa. Enciclopédica. Sabia tudo das obras que comercializava. Era admirado pelo proprietário do café e pela clientela, que faziam uso dos seus serviços. Mas vem a 1º Grande Guerra. Nacionalidades se opõem. Raças também. E o livreiro é considerado um inimigo da pátria. Novela profética, no que toca ao despertencimento à nação em que se vive, do destino do próprio Zweig?
Estes dias, topei com essa novela pelo menos duas vezes. Primeiramente, quando escrevia sobre os cafés de Viena. O sebista de Zweig tornou-se personagem clássica na cultura dos cafés da outrora capital imperial. A segunda foi quando trabalhava na publicação de meus livros, em e-books e impressos, na Amazon. Essa dupla conhecença não pode ser coincidência (e aqui inflaciono a minha porção mística). O destino não bate na nossa porta duas vezes. Ou bate? Sei lá. O fato é que, desde então, busco pelo “Mendel dos livros”. Perguntei a sebistas da terrinha. A amigos bibliófilos. Mas ninguém dá conta do dito cujo. A edição achada na Amazon, portuguesa, da Assírio & Alvim, custa R$ 481,00, mais frete. Mui caro. Não estou roubando.
Bom, não sei como terminará a minha busca pelo “Mendel dos livros”. Espero que bem. Longe de tragicamente, como no caso Zweig. Não mato nem morro por livros. Ainda. De toda sorte, indago: alguém pode me ajudar?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
20/10/2021
ACOMODAÇÕES DA 25ª HORA
Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com
A frase do ex-deputado federal pernambucano Thales Ramalho de que “maior que a ilusão política só a ilusão do amor” é de uma verdade tão cristalina que me fez refletir mais ainda sobre os últimos dias de Pompéia. A deterioração dos costumes políticos, as debandadas, as infidelidades à 25ª hora, a substituição das coligações eleitorais pela proliferação de legendas partidárias, as adesões no varejo e no atacado em tom promocional e de liquidação; a troca de legendas antes mesmo de o candidato assumir o mandato, tudo conduz o eleitor ao descrédito da vida pública, estarrecido com a conduta pérfida dos seus protagonistas. Em nome da mudança, do novo, do diferente, alguns agentes políticos estão destruindo a própria biografia no jogo vantajoso das premissas e das facilidades dos governos que estão por vir. Nunca a flauta mágica do fisiologismo tocou tão alto desbotando clichês, ruborizando os céticos e dissolvendo bancadas tal e qual o efeito sonrisal.
O que está acontecendo hoje com a chamada classe política? Deu a louca no mundo? É tão grande assim o impacto das dívidas e das dúvidas pendentes da campanha que passou? Dir-se-á que os partidos vencedores quando trocaram a ideologia pela convivência dos contrários, os partidos de direita e de centro perderam o pudor e se misturaram no mais estranho e promíscuo hibridismo partidário da história política do país.
Já que não posso entender, após exaustivas reflexões, espero que tanta gente junta dê certo, tanto aqui quanto alhures, como diria o nosso saudoso Paulo Macedo. Talvez isso tudo seja mesmo uma fogueira das vaidades. E ponto final. Tudo é mesmo ilusão. Nada além de uma ilusão, sobre a qual nos falava o saudoso ator e comunista Mário Lago.
Refletir sobre os fatos e factóides da vida talvez seja a melhor postura diante do mar de Cotovelo. O dom da observação é importante para aprender a viver e dissipar os contrapontos insurgentes. Ergui-me da rede para repensar o imponderável. Vamos devagar com o andor que o santo é de barro e não faz milagre.
Para o conhecimento do crítico de cinema Valério Andrade, o cenário é o mesmo, os figurantes idem. Mudam os atores, os diretores, produtores e roteiristas. A trilha sonora continuará sendo o hino nacional de Fafá de Belém, e por aqui a velha e ilusória marchinha carnavalesca “mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar...”. E o filme? O filme é o mesmo para que muitos, mais tarde, possam repetir novamente: já vi essa fita antes. Está escrito que, na história da humanidade, todos haverão de passar e que o Messias prometido só existiu um. E uma Cleópatra, também. Política, enfim, é mais do que circunstância. É ilusão, mesmo. E muita vaidade. É ilusão gratulatória.
(*) Escritor.
A PRIMAZIA DA INSENSATEZ
Tomislav R. Femenick – Mestre em economia, com extensão em sociologia e história
Alguns psicólogos, neurocientistas e outros estudiosos da mente e do comportamento humano admitem que a cosmovisão e a maneira de agir dos indivíduos têm origens em três fatores: a) a genética, isto é, o conjunto de qualidades transmitidas dos pais aos seus descendentes; b) o meio ambiente em que eles vivem, considerando, também, o lugar e a época; e c) a autodeterminação, ou seja, o dom de decidir por si mesmo, fazendo livre escolha para sua forma de pensar e agir perante fatos e ideias. Os pensadores divergem entre si sobre qual determinante é mais preponderante. Entretanto, é aceito que esses elementos – a genética, o meio ambiente e a autodeterminação – são a base da inteligência (do latim “intelligens, entis”, que compreende, que conhece), a capacidade que as pessoas têm para formulações lógicas, para a abstração e, principalmente, para a compreensão das narrativas e dos fatos.
Recentemente, a revista Veja publicou uma matéria sobre o assunto, em que constata um fato constrangedor. Depois de décadas em que a inteligência humana (medida pelo QI) evidenciava um crescimento constante, desde o início deste século o quadro se inverteu. Se antes os filhos se mostravam mais argutos que seus pais, hoje eles são menos interessados e mesmo alheados sobre assuntos do mundo em sua volta.
Por outro lado, o jornalista Spike Dolomite, do site norte-americano “Medium Daily Digest” (spikedolomite.medium.com) publicou uma matéria intitulada “O Desfile dos Idiotas” (tradução livre) na qual ele cita alguns exemplos: embora o Texas tenha ultrapassado quatro milhões de casos de covid, aquele Estado e mais vinte e três outros estão planejando processar Presidente Biden pela obrigatoriedade das vacinas. Isso só vem a comprovar que, desde a eleição de Trump, houve uma regressão cognitiva lá “pras bandas dos states”.
Diz ele: “Nunca seremos capazes de superar a Covid, a menos que esses estados admitam que estão errados e mudem seus caminhos. Latinos e negros americanos estavam relutantes em tomar a vacina, por razões culturais, mas, desde a obrigatoriedade, ambos os grupos alcançaram o grupo caucasiano em números. O único grupo indiferente são os republicanos. O número de republicanos que foram vacinados é de pouco mais de 50%. Os democratas são mais de 90%. Os democratas usam máscaras e são vacinados para proteger a si mesmos e aos outros de um vírus mortal. Os republicanos se recusam erroneamente e deliberadamente a usar máscaras e a se vacinar porque querem que o mundo inteiro saiba que eles não estão evoluídos e não dão a mínima para outras pessoas”.
Como lá, aqui por estas plagas abaixo da linha do Equador, onde nada é pecado, temos um presidente negacionista, ministros se vacinando escondido (para não contrariarem de Sua Excelência), a primeira-dama recebendo a vacina em Nova York, e mais de seiscentos mil óbitos atribuídos à covid 19. No entanto, o senhor presidente continua achando que quem toma vacina pode virar jacaré. Isso tudo enquanto o Conselho Federal de Medicina e alguns planos de saúde se apegam à autonomia médica, para justificar receituários fora da ciência, tão somente por convicção política ou por obstinação pessoal. E tome entrevistas em rádios e TV’s, aparições de vídeos nas redes sociais, tudo em busca de se transformarem em celebridades; se possível recebendo uns trocados, miúdos ou graúdos. Realmente este é um país da consagração das idiotices.
Será que esse é o Brasil em que eu nasci? Basta ver as notícias do cotidiano escalafobético. Dois esteios do liberalismo econômico pátrio, ocupantes de altos cargos da administração federal foram pegos “em arapuca de pegar gambá”. O Ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central, responsáveis por dar credibilidade à política econômica do governo, têm dinheiro aplicado em paraísos fiscais. É legal? É. É moral ou pelo menos recomendável que assim ajam? Não. Como esperado, o Congresso fez alarde, convocou os maljeitosos agentes públicos, etc. e tal. E nós? Nós vamos esperar os próximos capítulos dessa horrenda novela mexicana.
Tribuna do Norte. Natal, 20 out. 2021
Meritocracia e mediocridade
Padre João Medeiros Filho
Hoje, é frequente a decepção com vários líderes, parlamentares, administradores, magistrados e religiosos. Nomes – tampouco partidos – não bastam para convencer. Urge a presença de autênticos gestores para nosso povo, desprezando amadores, oportunistas, aventureiros e arrivistas. Infelizmente, o coronelismo ainda não foi abolido. Reaparece travestido de ideias democráticas, mas com iniciativas e ações autoritárias e autocráticas. Há carência de cidadãos verdadeiramente carismáticos, isentos de discursos maquiados e despidos de sofismas. É premente a presença marcante de indivíduos e grupos, imbuídos de ética, justiça, trabalho e sensibilidade social. Necessita-se de pessoas qualificadas, que atuem nas esferas nacional e regionais, voltando-se para os diversos segmentos da sociedade. Sem o surgimento de lideranças legítimas, as instituições permanecerão órfãs e não se ajustarão às necessidades contemporâneas. Isso não significa simplesmente ter esperança neste ou naquele chefe ou sigla. Ao contrário, aspira-se à articulação de pessoas com propósitos sérios e dedicação às instituições. Gente que possa servir e não se utilizar delas para seus projetos individuais.
Muitos buscam guarida nos entes públicos, privados e até religiosos, com intuito de ocupar um lugar que lhes garanta vantagens e benesses. Procuram blindar-se, pois almejam cobranças em suas ações. Acomodam-se e contentam-se com resultados pífios, decorrentes de suas opiniões e atuações. A sociedade hodierna está rejeitando estes velhos costumes e métodos. Ela vem tecendo uma dinâmica cultural, na qual não se aceitam conchavos e barganhas, onde predominam benefícios pessoais ou de grupos. A carência de líderes comprometidos com o bem comum e o progresso da nação é consequência de uma insuficiente formação humanística e cívica. Outrossim, as religiões devem fazer o “mea-culpa”. Sem isto, corre-se o risco de se deixar conduzir por princípios duvidosos e envolver-se nas malhas da injustiça e desonestidade. Neste ponto, o papel das crenças religiosas é urgente e essencial.
No Brasil atual – salvo engano e verificadas as exceções – consolidam-se hegemonias medíocres. Está se tornando habitual na sociedade a presença de governantes e legisladores incapazes de oferecer soluções aceitáveis para os mais comezinhos problemas. E o pior: muitos se destacam no voo livre do despreparo e improviso. E deste modo, relega-se ao desprezo a valorização dos méritos. Os pseudolíderes são habilidosos em ocultar seus interesses e erros. Há quem ouse, à sorrelfa ou às claras, defender as maquinações de desvio do dinheiro público e enriquecimento ilícito. Assemelha-se a uma ética de guerra, na qual os fins justificam os meios. Uma característica relevante dos medíocres consiste em não admitir seus erros e perceber suas limitações. Os despreparados são ousados e candidatam-se, sem pejo, a funções de grandes responsabilidades, sem a mínima condição de exercê-las. Os probos, muitas vezes, se abstêm, pois são imbuídos do exercício da autocrítica, imprescindível à renovação.
As entidades brasileiras, inclusive religiosas, necessitam de uma nova onda de sérias lideranças. Jesus já alertava contra o perigo dos remendos: “Não se põe conserto de pano novo em roupa velha.” (Mt 9, 16). O país exige outras dinâmicas para superar estorvos obsoletos. A população está saturada de discursos teatrais e inócuos. Um político, já falecido, ao dirigir-se à tribuna do Senado, assim se expressou: “Não suporto mais essa pletora de palavras vazias, desprovidas de ideias e propostas de soluções”. É-nos lançado um grande desafio: modificar a cultura da mediocridade, que contamina indivíduos, instituições e lugares. Esse processo requer a dedicação de todos à autocrítica e ao compromisso de fazer escolhas bem fundamentadas. É indispensável agir com sabedoria no exercício das responsabilidades. Não se deve permitir espaços àqueles que escondem a própria superficialidade, dominando pessoas, grupos e entidades. É hora de prevalecer o mérito, a partir de uma ação inteligente e inovadora, dedicada à vida, paz e justiça. Cristo, usando metáforas, desaprovava as atitudes de seus contemporâneos, comparando-as a cegos que conduzem outros deficientes visuais. “Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão no precipício.” (Mt 15, 14). E o profeta Isaías, oito séculos antes do cristianismo, alertava seus contemporâneos: “Vários de seus responsáveis são míopes. Muitos são como cães mudos... Seu prazer é dormir e permanecer insensíveis ou incólumes a tudo!” (Is 56, 10).
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