Páginas

28/02/2022

 

A terceira via
​Quando fui fazer doutorado (PhD) no Reino Unido, em 2008, o jusfilósofo Ronald Dworkin (1931-2013) andava por lá. Era professor no University College London – UCL. Era muito badalado. Recordo-me de haver ido xeretar uma de suas palestras. Ele faleceu na amada Londres, de complicações de uma leucemia, não muito tempo depois. Uma pena.
​Dworkin nasceu em Worcester, Massachusetts, nos EUA. Estudou nas universidades de Harvard (bacharelado e doutorado) e de Oxford. Coisa de primeira qualidade. Foi assessor no Judiciário americano. Advogou em Nova York. Foi professor na Yale University. Sucedeu a H. L. A. Hart (1907-1992) na cátedra de filosofia do direito da Oxford University. Pontificou lá por 30 anos. Foi finalmente professor na New York University e no University College London, além de ter dado cursos em outras universidades mundo afora.
​Filósofo, jurista e constitucionalista, Dworkin foi muito atuante no debate público no mundo anglo-saxão, em jornais e em publicações especializadas. Mas Dworkin é sobretudo o autor de alguns clássicos da ciência do direito. “Taking Rights Seriously” (1977), “A Matter of Principle” (1985), “Law’s Empire” (1986), “Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality” (2000) e “Justice for Hedgehogs” (2011) são os mais célebres. É fácil encontrá-los, com os títulos “Levando os direitos a sério”, “Uma questão de princípio”, “O império do direito”, “A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade” e “A raposa e o porco-espinho: justiça e valor”, em edições honestas da Martins Fontes.
​A obra de Dworkin é variada. É até difícil de compreendê-la e, muito mais, de resumi-la. Mas podemos apontar dois núcleos.
​O primeiro está na sua defesa de uma justiça distributiva, materialmente igualitária, desenvolvendo um veio que vinha de Aristóteles (384-322 a.C.) e chegava no seu conterrâneo John Rawls (1921-2002). Vai longe Dworkin nessa busca de uma igualdade material. De fato, o princípio da igualdade perante a lei, como um dogma político e jurídico, é ouro. Mas ele não pode ficar apenas no plano normativo. Tem seu lugar, talvez o de maior destaque, na solução materialmente igualitária de casos concretos na vida em sociedade.
​E assim chegamos ao segundo aspecto da filosofia de Dworkin. Um jusnaturalismo moderado. Ou, como li em “Little Book of Big Ideas – Law” (A & C Black Publishers Ltd., 2009), de Robert Hockett, “uma terceira via”, entre as visões positivistas e jusnaturalistas.
​Metodologicamente, Dworkin trabalha sua teoria do direito “como uma teoria acerca de como os juízes decidem os casos concretos”. Para decidir, os juízes devem considerar o que está na lei e nos precedentes judiciais. Parece óbvio e assim o diz Dwokin em “Levando os direitos a sério” (Martins Fontes, 2002): “as teorias da decisão judicial tornaram-se mais sofisticadas, mas as mais conhecidas ainda colocam o julgamento à sombra da legislação. Os contornos principais dessa história são familiares. Os juízes devem aplicar o direito criado por outras instituições; não devem criar um novo direito”. E aqui temos uma visão positivista do direito.
​Se o dito acima é o ideal, ele nem sempre é possível. Dworkin afirma que as regras do direito “são quase sempre vagas e devem ser interpretadas antes de se poder aplicá-las aos novos casos. Além disso, alguns desses casos colocam problemas tão novos que não podem ser decididos nem mesmo se ampliarmos ou reinterpretarmos as regras existentes. Portanto, os juízes devem, às vezes, criar um novo direito, seja essa criação dissimulada ou explícita”. Dwokin fala em buscar a “melhor interpretação moral”, o “melhor para a comunidade” e, ao fazê-lo, os juízes devem agir estabelecendo normas que, “em sua opinião, os legisladores promulgariam caso se vissem diante do problema”. E aí está o seu viés jusnaturalista.
​Todavia, para Dwokin (e temos o semipositivista), “é muito comum que o legislador se preocupe apenas com questões fundamentais de moralidade ou de política fundamental ao decidir como vai votar alguma questão específica. Ele não precisa mostrar que seu voto é coerente com os votos de seus colegas do poder legislativo, ou com os de legislaturas passadas”. Um juiz não deve mostrar esse tipo de independência total. Ele deve associar sua decisão às decisões que outros juízes tomaram no passado. A força da sua decisão deve estar baseada não só na sua “sabedoria”, mas, também, na “equidade” de tratar casos semelhantes do mesmo modo.
​E, dito tudo isso, temos um Dworkin tanto terceira via como igualitário. Grande nome.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Curtir
Comentar
Compartilhar

0 comentário

24/02/2022


 JOSÉ VASCONCELOS DA ROCHA

 Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes (Conselheiro do América F.C.)

José Vasconcelos da Rocha foi uma criatura com uma história singular. Natural de Guarabira-PB, nascido a 23 de dezembro de 1935, filho de Adauto Ferreira da Rocha e de Marluce de Vasconcelos da Rocha, buscou vencer na vida por vários caminhos, a política onde foi Deputado Estadual (PTN), eleito no período de 1959 a 1967, onde alcançou a condição de Presidente da Assembleia e  2º Vice Presidente. Fez parte do grupo de deputados que criou a “Assembleia do Museu”, quando da dissidência dos correligionários de Dinarte Mariz contra o Governo Aluízio Alves. Foi vice-prefeito de Goianinha, de 1958/1959.

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de Alagoas, tendo colado grau em 2 de dezembro de 1963, tornou-se advogado militante e depois Ingressou no cargo de Juiz do trabalho de 2ª Instância, ocupante de vaga destinada a representante da OAB/RNN, nomeado através do decreto Presidencial de 14 de novembro de 1991, tomando posse em 15 de junho de 1992, sendo eleito o 1º Presidente do Tribunal Regional do Trabalho – TRT da 21ª Região.

Em sua vida encontrou algumas pedras no caminho, a teor da época do movimento militar que derrubou o Presidente João Goulart em 1964, quando, por força de um discurso em defesa da manutenção do governante constitucional logrou a indignação de alguns militares e foi procurado para prestar justificativas, quando então foi obrigado a fugir de um cerco à sua casa, fugindo para sua terra natal, acompanhado do advogado Hélio Vasconcelos e dos acadêmicos de direito Danilo Bessa e Berenice Freitas.

Retorna a Natal, mas antes fez contatos importantes com figuras proeminentes do Estado, como Dinarte Mariz, Odilon Ribeiro Coutinho e com militares conhecidos - general Omar Emir Chaves, o coronel Mendonça Lima, foi até ao IV Exército, em Recife. Lá, conhecia o coronel Valmir Alves da Nóbrega, que o informou “aqui não há nada contra você”. Com Odilon contatou com o general Terra Ururahí, e tudo terminou bem.

Aposentado como desembargador federal, retornou à advocacia e passou a atuar com grande fervor ao esporte, mais exatamente ao seu América Futebol Clube, de onde foi Presidente e Presidente do Conselho Deliberativo até os dias presentes. Ergueu o a Arena América, que recebeu o seu nome, repetindo sua ação de construção, como o fez com a sede da Justiça Trabalhista em Natal, quando integrante daquela Corte.

Com ele, eu tive convivência no América e retornei aos quadros de sócio, apagando uma grande deselegância contra mim praticada e que me levou a abandonar o clube. Na nova fase fui convidado para minutar um projeto de novo Estatuto do Clube, aprovado por uma Comissão e depois aprovado pelo Conselho Deliberativo, com emendas oferecidas por outros associados.

Soube do seu problema de saúde e falecimento hoje, pelo meu filho Rocco José, em seguida confirmado pelo Conselheiro do América Odúlio Botelho, posto que ando um tanto desligado do noticiário, uma vez que estou dividindo a minha residência entre Natal e Cotovelo.

Fiquei muito abalado e, de imediato, no calor da emoção, resolvi fazer esta homenagem ao companheiro americano e amigo Zé Rocha. Deus o receba em sua Casa Celestial.

Olhe, lá estará lhe esperando outro americano, meu pai José Gomes da Costa (Zé Gomes), que foi quem adquiriu o terreno onde hoje está plantada a sede do América.

23/02/2022

 

ORIANO: ÚLTIMA ESTROFE

 


Valério Mesquita(**)

mesquita.valerio@gmail.com

 

Direi pouco sobre Oriano de Almeida. Outros falarão melhor porque conviveram de perto com o seu talento e a sua vida. Cláudio Galvão, Diógenes da Cunha Lima, por exemplo, Maria Luiza Dantas, Sanderson Negreiros, Enélio Lima Petrovich (que inaugurou o Memorial Oriano Almeida no anexo do IHGRN em 2001), se já não dissertaram, o farão, com certeza, com brilho e propriedade. Resolvi pronunciar-me porque gosto de pontuar atitudes e assumir gestos quando vejo algo que me desagrada. Fui à Academia de Letras me despedir do seu corpo, na sua tarde derradeira e melancólica. Não apenas movido pelo dever de colega acadêmico ou por solidariedade cristã, mas porque efetivamente ele foi um compositor e intérprete maravilhoso para a honra e orgulho do Rio Grande do Norte, cujo povo não “está nem aí”. No recinto, durante os discursos de despedida, pouquíssimos presentes.

Aí começou a nascer em mim a necessidade de protestar, de me indignar, de não me calar. Comentei com Genibaldo Barros, Armando Negreiros e Ernani Rosado que ali estavam: é o menor público da vida de Oriano, quando deveria ser o maior. Ele que havia conquistado as plateias milionárias, exigentes e refinadas do mundo inteiro não conseguia reunir para o último adeus a intelectualidade de sua terra. Quanta ironia, quanto paradoxo a vida nos ensina. O maior intérprete do mundo da obra de Chopin, que encantou os palcos da arte musical, gênio da música, compositor, ocupante da cadeira nº 13 que pertenceu a Câmara Cascudo, estava finalmente esquecido. Havia atingido a “verdadeira imortalidade”. Já escrevi que Natal sofre de ataraxia, indiferença. É pobre de sentimentos. 

Chegou um momento, no velório, que Diógenes preocupou-se com os circunstantes para conduzir o esquife do salão ao veículo funerário. A maioria era mulheres entre reduzido grupo de sexagenários em débito com o teste ergométrico. Afirmo, sem qualquer preconceito, que talvez tenha faltado a Oriano a passagem por uma banda de forró. Resta a esperança de que o nome, a importância do que fez como musicista, intérprete, compositor e escritor não desapareça. Não tenho dúvidas de que Oriano Almeida é maior do que os ausentes. A sua obra tem abrangência nacional e internacional. Simples, não buscava os refletores da fama. Ela vinha até ele. Nem o elogio fácil.

Já disse que na vida quando se passa dos 60 ou 70 anos, torna-se estatística. Diferente dos países mais civilizados. E Oriano se foi com 83. Fica para os pesquisadores, memorialistas e estudiosos da música e da obra que ele nos lega, a tarefa permanente de afirmar que Oriano Almeida vive. Na frase, que não é minha e nem sei de quem, mas que eu gosto de lembrar: “Não se acaba o homem. Constrói-se a cada dia sua performance”.

 

(*) Artigo publicado no livro “Inquietudes”

(**) Escritor

 


13/02/2022

 



Novas Cartas de Cotovelo – verão de 2022-06

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

UM DOMINGO DE PAZ E SOL

        Depois de uma sexta-feira diferenciada, que trovejou e alagou o primeiro andar da minha casa, com uma chuva diferente, o que nunca havia acontecido desde que a construí, Cotovelo (há mais de 30 anos), tudo volta à sua normalidade, permitindo retomada das atividades quase 100%, embora registrando alguns pequenos danos em ruas sem calçamento, um início de incêndio numa mercearia em frente ao Posto de Gasolina que, segundo comentam, teria sido o resultado de um raio.

        No sábado fui ao vale do Pium (já no território de Nísia Floresta), com Carlinhos para abastecimento da casa com frutas e legumes – tudo legal.

        Eis que chega o domingo e com ele a Paz e a claridade do Deus Sol, em toda a sua exuberância. Levantei-me cedo e deixei Carlos Neto hibernando no ar condicionado.

        Na varanda da casa tive a oportunidade de assistir a Missa na Igreja de Santa Luzia, celebrada pelo Padre Sidney, transmitida pela rádio web Mar e Campo, do nosso estimado amigo Octávio Lamartine. Em seguida, ainda emocionado com as mensagens recebidas fiz minhas comunicações, por celular, com o filho e filhas que momentaneamente não estão nesta querida praia, e o fiz com muita emoção, porque a religião nos oferece milagres espirituais.

        Um café farto feito por Carlinhos e Valéria, sem faltarem as costumeiras vitaminas de mamão com abacate, leite vegetal e fibras, depois um cafezinho feito na hora com fruta-pão e com o olhar pidão de Luma (nossa bulldog francês).

        Dando continuidade às minhas meditações, vislumbrei a minha mesa santuário, com os Santos da devoção da minha sempre saudosa Therezinha, cujo retrato ornamenta esse recanto sagrado, que tem em destaque uma pintura de Jesus orando e outra do Padre Pio e, em minha cadeira de balanço herdada da saudosa companheira, dei uma vista ao pequeno jardim e logo me deparo com o fiel beija-flor, cuja descendência há mais de 30 anos faz parte da geografia emocional do lugar e as cadeiras desarrumadamente dispostas, juntamente com as redes enroladas nos armadores, algumas bolas dispersas pelo chão e o sentir da brisa que nos premia neste recanto da casa. Em seguida fui beijar o mar, que estava com sargaço – coisas da fase da lua.

        Lembrei-me, então, daquela conhecida música – “Minha casa é tão bonita, que dá gosto a gente ver, tem varanda, tem jardim... minha casa que tem tudo, tanta coisa de valor, minha casa não tem nada [vivo só sem meu amor]”. Fiz adaptações à letra original de Minha Casa, de Joubert de Carvalho.

        Mas, domingo é dia de alegria – VIVA A VIDA.

 -

08/02/2022

 


 

Novas Cartas de Cotovelo – verão de 2022-05

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

REVISITANDO A CASA DE PEDRA DE PIUM

        Neste último sábado resolvi revisitar a Casa de Pedra de Pium, equipamento histórico que tantas vezes mereceu crônicas e entrevistas minhas ao longo dos últimos anos.

     Minha primeira decepção foi constatar que, apesar dos apelos e até da celebração de uma missa no final do ano passado diretamente daquelas ruínas históricas, com a presença do arcebispo Don Jaime, o acesso piorou muito, agora mais do que nunca o pequeno trecho não passa de um caminho de animais, com a pior qualidade que se possa pensar, sem nenhuma possibilidade de manobra quando alguém se arrisca a ter acesso por veículo com alguma calibragem, pois será dificílimo algum dos veículos recuar.

     Essa agora “aventura” que fiz, com familiares, permitiu que reexaminasse o sítio histórico e agora fizesse algumas retificações: primeiro, houve plantação de árvores frondosas que retiraram a visão que existia para o mar, como anteriormente anunciei, qual seja, a visão da costa desde o contorno de Pirangi para Cotovelo quanto desta praia para o contorno de Ponta Negra, tirando o sentimento de que aquela construção secular daria uma visão da enseada capaz de avistar qualquer possível inimigo; segundo, em meu sentir, houve o agravamento da movimentação de algumas pedras que fazem parte daquele complexo; houve o aterramento, na marra, da passagem de fios de nascentes de água de um lado para o outro da estrada de acesso – essa que considero própria para animais.

      O lado positivo é que o vale está preservado com criação de gado, coqueirais, plantações de verduras, frutas e hortaliças, ainda longe do agrotóxico.

       Existem resquícios de algumas construções não concluídas de possíveis espigões ou condomínios fechados, ou mesmo mansões inadequadas para a paisagem bucólica a ser preservada, estes/estas depredados, já sem telhados, portas e janelas, enfim abandonados.

       Desconheço qualquer intervenção da Prefeitura de Nísia Floresta no sentido de regulamentação do uso do solo naquela localidade.

        Assim, convoco os interessados para resolvermos essa pendenga, entrando em contato com os possíveis proprietários (família Galvão) e depois com a Fundação José Augusto e com a Prefeitura de Nísia Floresta, aproveitando o momento político de breves eleições, sempre no intuito único de preservação da história.


 

Qual a finalidade?
O grande penalista Basileu Garcia (1905-1986), em suas “Instituições de Direito Penal” (vol. I, tomo I, editora Saraiva, 2010), certa vez anotou: “Castigar ou punir, expiar, eliminar, intimidar, educar, corrigir ou regenerar, readaptar, proteger ou defender – eis verdadeiros verbos que, na diversidade das opiniões, indicam as finalidades possíveis do Direito Penal e, através destas, as raízes da sua existência. Para precisar essas finalidades, elaboram-se doutrinas, reunindo maior ou menor número de adeptos. E algumas tiveram irradiação tão ampla, que passaram a constituir escolas, as quais intentaram delimitar-se pela fixação de toda uma série de ideias centrais sobre as mais graves questões da nossa matéria”.
Mas qual é mesmo a finalidade do direito penal?
Especificamente, qual é a finalidade da pena ou sanção, já que a ratio do direito penal gira muito em torno desta, que é a resposta do Estado na sua labuta contra a criminalidade?
A pena já foi “encarada” de diversas maneiras, é claro. Basicamente, há os absolutistas (“pune-se porque pecou”, segundo Basileu Garcia), os utilitaristas (“pune-se para que não peque”) e os adeptos de uma teoria mista (“pune-se porque pecou e para que não peque”). E aqui já me afasto de gente como Claus Roxin (1931-), que sugere “excluir” a retribuição da teoria penal contemporânea em prol de uma quase exclusividade da prevenção/ressocialização como finalidade da pena. Embora eu também registre aqui que sou fã, em grande medida, de Roxin e do seu princípio da insignificância ou bagatela.
Pondo de lado considerações pouco ortodoxas, quase nada jurídicas, do tipo “bandido bom é bandido morto” (e aqui a finalidade do direito penal seria apenas “apagar um CPF”, como se diz estupidamente por aí), acredito que podemos sistematizar as finalidades da pena, sem as complicações artificialmente criadas pelos juristas, em quatro grandes eixos.
Para tanto, farei primeiramente uso do direito italiano, como homenagem ao país que nos deu as duas primeiras grandes escolas do direito penal, a clássica e a positiva. Segundo registra a “Enciclopedia del Diritto” (Editora De Agostini, 1994), à luz do Código Penal Italiano, a pena tem múltiplas finalidades, das quais as principais são: “(a) preventiva [geral]: visa prevenir o cometimento de crimes, visto que a previsão da sanção criminal representa um contraestímulo ao crime; a pena, portanto, tem uma função dissuasora, pois o potencial delinquente sabe que, se você cometer um determinado crime, corre o risco de uma determinada punição; (b) punitiva: a punição tem a função de punir o autor do crime; a este respeito, se fala de uma função retributiva, visto que constitui uma contraprestação pelo crime cometido, e é de fato proporcional à sua gravidade; (c) reeducativa ou ressocializante: a pena visa reeducar o autor do crime e favorecer sua reinserção social; para este fim, muitos institutos operam como semidetenção, liberdade condicional para serviço social, trabalho dentro da prisão etc”.
Faço apenas mais algumas considerações. A primeira é que devemos acrescentar, à finalidade preventiva geral, que é dissuasora para todos os potenciais delinquentes (assim pedagógica para todos), uma (d) finalidade preventiva especial, para aquele que cometeu o crime específico, que, além de supostamente dissuadido de cometer novos crimes (afinal, foi razoavelmente penalizado quando o cometeu), estará impedido de cometer esses crimes, uma vez que estará detido e afastado da sociedade (partindo aqui do pressuposto de que lhe foi aplicada uma pena ou medida privativa de liberdade).
A segunda consideração é que minha sistematização está de acordo com o nosso direito criminal. Afinal, determina o Código Penal brasileiro, no seu art. 59, in fine, que o juiz aplicará a pena “conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. E a Lei de Execuções Penais, logo no art. 1º, complementa dizendo que a execução penal “tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Bom, nada melhor do que seguir a lei para não sofrermos uma sanção ou pena.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
1

 REFLEXÕES AO ENTARDECER


Valério Mesquita*

mesquita.valerio@gmail.com


Tarde tediosa aquela do domingo que antecedeu o meu aniversário. O silêncio vespertino de Lagoa Nova me envolvia de surda espera. O quadro das ruas desabitadas se acostumou ao olhar vergado de tantas rotinas. O que mais devo repartir além da fadiga? Quantas pedras deverei ainda remover do caminho, como no verso de Carlos Drummond de Andrade? Cansaço físico e mental é muito comum. Diante de tudo que passei confesso que sobrevivi. Nordestino de Macaíba sobrevive – só Pablo Neruda confessou que viveu. Quem faz a travessia política durante mais de três décadas pode dizer que combateu e não perdeu a lâmina da alma.


Estou consciente que completo mais um périplo em torno do tempo. Silente, penetro no labirinto sem recomeço. Já ingresso na fila do caixa dos supermercados reservado aos idosos. Quase octagenário não é um velho. Mas a lei generosa permite. Recuso-me. A idade é vulnerável mas navegável quando soprada pelo vento leste porque ainda tenho a memória do fogo e da rosa. Explicar a minha vida? Não há porquê. Tenho um amigo que já escreve a sua autobiografia precoce aos sessenta. Se o fizer tal coisa somente irá ocorrer quando sentir o medo de viver. Ainda acredito na aurora, no porto, no barco, nas estrelas, no pássaro, na paz, no perfume de mulher. Aliás, o dossiê biográfico pesará pouco diante da Providência. Terão mais valor as ações que deixaram de ser feitas. O pecado da omissão é assombroso. Conforta-me haver atravessado as noites escuras do tempo sem desamar os frutos. O quinhão usual de tristezas e equívocos fica por conta da difícil condição humana de ser. 

Na vida pública aprendi uma amarga lição que serve para os atuais protagonistas: na política não há só amigos e inimigos, mas conspiradores que se unem.


Certa vez, o saudoso poeta Sanderson Negreiros disse que “é difícil ser testemunho de crepúsculo. Ele não é apenas cores se movimentando ao sol-posto. Mas a certeza de que não são caminhos somente para a morte, mas que, de nós, muita coisa ainda restará para a vida”. Fecho com o poeta maior as reflexões do meu entardecer.


(*) Escritor



01/02/2022

As “incelenças” Padre João Medeiros Filho São cânticos ou benditos fúnebres, executados por grupos de rezadores e rezadeiras (distintos das “Encomendadeiras das almas”), durante a vestição da mortalha, o velório (“fazer quarto”) e o sepultamento dos fiéis. Existem ainda em vários estados do Brasil. Discute-se a origem do termo. Evidentemente, trata-se de uma corruptela da palavra excelência. Para Oswaldo Lamartine, arrimado na Missão Abreviada, o termo provém de “orações de excelência para conduzir a alma ao Céu.” Lamartine seguia a recomendação do apóstolo Paulo: “Guardai cuidadosamente as tradições que vos foram ensinadas” (2Ts 2, 15). Segundo Théo Brandão, originalmente as incelenças eram cantadas nos funerais de criancinhas, verdadeiros anjinhos e excelências da corte celestial. De acordo com alguns historiadores, tal costume foi trazido de Portugal e enriquecido com elementos indígenas e africanos. Há vestígios de sua existência na Itália (Sicília) e na Grécia Antiga. Cabe lembrar que no sertão nordestino, urbano ou rural nem sempre existia a presença sacerdotal para presidir os funerais, nascendo formas alternativas de encomendação. Os clérigos mostravam no passado (talvez ainda hoje) pouco apreço pela religiosidade popular. Faltava-nos uma melhor formação para perceber a riqueza cultural, integrante da identidade de nosso povo. Não fomos iniciados na verdadeira seiva da sabedoria popular que constrói as tradições de nossa gente. Em razão desse menoscabo, muita coisa se perdeu. Padres Jocy Rodrigues (Tutóia/MA) e Reginaldo Velloso (Olinda/PE) conseguiram resgatar obras primas. Houve tempos em que as incelenças eram consideradas superstições, sendo desestimuladas ou proibidas. Hoje, muitos movimentos tentam perpetuar a rica tradição religiosa e cultural. Dentre tantos, destaca-se um grupo da comunidade de Cabeceiras, em Barbalha (CE). Assevera-se que a sistematização das incelenças começou com o Padre José Antônio de Maria Ibiapina (1806-1883). Este organizava equipes de fiéis (beatos), denominados “penitentes”, para catequizar o meio rural. Por muito tempo, tais cânticos constituíram parte fundamental dos velórios na região do semiárido, tendo sido registrados por vários estudiosos. Em “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, a conversa entre Severino e a Comadre – na qual ela lhe pergunta se sabia rezar incelenças – sugere que estas desempenhavam papel importante na vida cotidiana das comunidades nordestinas. Assim lemos em João Cabral: “Essa vida por aqui é coisa familiar. Mas, diga-me retirante, sabe benditos rezar? Sabe cantar excelências, defuntos encomendar? Sabe tirar ladainhas? Sabe mortos enterrar?” Dorival Caymmi gravou um desses benditos com o título de “Velório”, explicitando o fato de que para o sertanejo os velórios e as incelenças são quase inseparáveis. Algumas foram gravadas por: Clementina de Jesus e Edu Lobo. Nara Leão canta a incelença da Virgem: “Oh! Mãe de Deus, rogai por ele [falecido]. Esperança nossa, fonte do amor, gênio do bem, honesta flor.” Nessa forma popular de velório, realizada na casa do falecido – estendendo-se por toda a noite anterior ao enterro – atribui-se aos cânticos e rezas a propriedade de invocar anjos e santos, que, segundo a crença, acompanham a alma do falecido até o destino conveniente. De transmissão basicamente oral, nem sempre formam um ritual homogêneo, variando conforme a região, o grau de instrução dos presentes etc. Em tais rituais, há amálgama entre práticas oficiais da Igreja Católica e hábitos da religiosidade popular. Em muitos casos, versos lúdicos e trechos de cordel – despidos de qualquer significado místico – são enxertados para consolar os parentes do falecido. A estrutura literária dos benditos é poética, geralmente composta de grupos de doze estrofes, suplicando misericórdia, demonstrando penitência e arrependimento pelos pecados cometidos. O número é simbólico em homenagem aos doze apóstolos de Cristo. A figura intercessora de Maria Santíssima sempre está presente. Inspiradamente, Ariano Suassuna a denomina “A Compadecida”. A musicalidade é um misto de canto gregoriano em forma de salmodia com sons e tons de aboio. São cânticos de melodia despojada, com o predomínio do estilo silábico e sonoridade repetida, proferidos diante do defunto pelos familiares, amigos e vizinhos. A vida e a morte são elementos importantes da religiosidade popular no Brasil. Revelam a espiritualidade do povo brasileiro, que vive em profunda comunhão com Deus, em quem deposita uma infinita confiança. Há consciência de que “Deus é o Senhor da vida e da morte.” (1 Sm 2, 6).