17/12/2019


As contradições (IV)
No nosso papo da semana passada, tratamos dos critérios para a solução das contradições ou antinomias jurídicas: o hierárquico, o de competência, o cronológico e o de especialidade. Em regra, fazendo uso desses critérios, isolada ou conjuntamente, o aplicador do direito deverá encontrar uma solução para a aparente antinomia.
Entretanto, os critérios de solução das antinomias jurídicas acima referidos, na medida em que levam em conta apenas uma das características das proposições em conflito – hierarquia, competência, cronologia ou especialidade – são limitados. Como explica Victoria Iturralde Sesma em “Aplicación del derecho y justificación de la decisión judicial” (Editora Tirant lo Blanch, 2003), isoladamente, “o critério hierárquico resolve as contradições entre enunciados de nível hierárquico diferente, mas igualmente competentes, de igual generalidade e publicados num mesmo momento; o de competência, entre enunciados em que um deles provém de autoridade incompetente, mas que são ambos de mesmo nível hierárquico, de igual generalidade e foram publicados num mesmo momento; o cronológico, entre enunciados publicados em momentos diferentes, mas de mesmo nível hierárquico, de competência e de generalidade; e o de especialidade, entre enunciados de graus de generalidade/especialização diversos, mas de mesmo nível hierárquico, igualmente competentes e publicados num mesmo momento”.
Na verdade, os casos de antinomias jurídicas normalmente possuem descoincidências em mais de uma dessas características, como, por exemplo, quando uma das normas em conflito é hierarquicamente superior, mas cronologicamente anterior, e a outra é hierarquicamente inferior, mas cronologicamente posterior. Aqui a contradição vai além do conteúdo dos enunciados, chegando aos próprios critérios a serem utilizados para as suas soluções. E, a depender do critério adotado, se terá soluções diversas. Essas contradições, que se dão ao nível dos próprios critérios de solução, são chamadas de “antinomias de segundo grau”.
Existem alguns critérios para solucionar essas antinomias de segundo grau (embora não todas, como se verá a seguir). São, portanto, “metacritérios”, que se prestam a resolver antinomias entre critérios.
Grosso modo, podemos dizer que (i) o critério hierárquico prevalece sobre os critérios cronológico e de especialidade. Damos como exemplo o caso de um conflito entre uma norma constitucional e uma lei ordinária posteriormente editada. Temos uma antinomia entre os critérios hierárquico e cronológico, que facilmente se resolve em prol do primeiro (se usássemos, equivocadamente, o critério cronológico, daríamos amparo à norma ordinária). Aliás, do contrário, o princípio da hierarquia das normas perderia o seu sentido, com Kelsen (1871-1973) se revirando no túmulo da sua “pirâmide”. Semelhantemente, podemos afirmar também que (ii) o critério de competência prevalece sobre os critérios cronológico e de especialidade. O contrário seria ilógico. “Apenas em caso de conflito entre enunciados [de autoridades igualmente] competentes poderão ser utilizados os critérios da especialidade e cronológico”, bem anota Victoria Sesma.
Mas nem sempre a coisa é assim, tão preto no branco. Peguemos o caso da (iii) antinomia de segundo grau entre os critérios cronológico e de especialidade, sendo uma das normas posterior e geral e a outra anterior e especial. A primeira seria privilegiada pelo critério cronológico; a segunda, pelo critério da especialidade. Em regra, é verdade, terá lugar o brocado ou metacritério latino “lex posterior generalis non derogat speciali” (“a lei geral posterior não revoga a lei especial anterior”). Entretanto, esse é um caso que admite exceções, a depender dos conteúdos e dos desideratos das normas em conflito. Como explica Victória Sesma, “não se pode estabelecer uma regra clara em relação ao conflito entre os critérios cronológico e de especialidade, que deverá ser resolvido, caso a caso, pelo aplicador do direito. Um dos fatores a ter em conta nestes casos é a maior ou menor justificação do enunciado especial, avaliando se ele contém uma normatização verdadeiramente justificada ou uma discriminação sem fundamento algum”. E esse dilema, pode ter certeza, não é incomum.
E ainda há a questão do aparente (iv) conflito entre os critérios hierárquico e de competência. Qual prevaleceria? Aqui, penso, estamos diante de um falso dilema. Esse conflito (de segundo grau) inexiste. O fundamental é estabelecermos se estamos diante de um conflito hierárquico ou de competência. Se é de competência, este critério prevalece, como na relação entre uma lei de determinado estado da Federação e a Constituição de outro. Aquela pode prevalecer, se competente para tanto. Mas se é uma relação hierárquica, em algum âmbito de aplicação coincidente, a norma superior deve prevalecer, como no conflito entre uma norma do Código Penal (diploma “competente” por excelência para definir delitos e penas) e a Constituição Federal.
De toda sorte, uma coisa é certa. No caso extremo de antinomia de segundo grau sem metacritério para solução – e podemos até imaginar um conflito entre dois enunciados de mesma hierarquia, igualmente competentes, cronologicamente coincidentes e com o mesmo grau de generalidade –, o juiz terá de decidir, optando por um deles. Dizem que pelo mais “justo”. Só não me perguntem o que “justo” significa. Embora com tantos anos na lida, ainda não sei bem o que danado isso é.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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