01/12/2019


As contradições (I)
As contradições normativas – ou, mais precisamente, as antinomias – são muito comuns no direito. De fato, o ordenamento jurídico de qualquer país é composto por um grande conjunto de normas (incluindo regras e princípios), oriundas das mais variadas fontes, que podem apresentar, num âmbito de validade aparentemente idêntico, oposições de conteúdo entre si que as tornam incompatíveis. Sob o ponto de vista da lógica das normas, a chamada “lógica deôntica”, teríamos, em um mesmo ordenamento jurídico e supostamente sob um mesmo plano de validade, grosso modo, situações do tipo: (i) uma norma obriga e outra proíbe; (ii) uma norma obriga e outra permite; (iii) ou uma proíbe e outra permite um determinado tipo de comportamento.
Esse tipo de situação, entretanto, não é desejável. Mais do que isso, não deve ser admitida. Um ordenamento jurídico, por caracterizar-se como um sistema, não pode conter normas incompatíveis. Um sistema, por definição, há de ser coerente. Nele, existindo normas incompatíveis, uma delas (ou mesmo ambas, em uma situação limítrofe) deve ser “eliminada” ou ao menos posta de lado na resolução do caso concreto.
Aqui é importante que se frise a “transitoriedade” da inaplicabilidade, da norma assim tida, em hipótese de antinomia normativa. Entre nós, tirando o caso da declaração de inconstitucionalidade no controle abstrato pelo Supremo Tribunal, com sua eficácia “erga omnes” (leia-se: força de lei), a norma desconsiderada em caso de conflito não será extirpada do ordenamento jurídico, mas, tão somente, inaplicada no caso concreto.
Como ensina Victoria Iturralde Sesma, em “Aplicación del derecho y justificación de la decisión judicial” (Editora Tirant lo Blanch, 2003), uma das tarefas fundamentais do intérprete ou aplicador do direito é verificar se há ou não antinomia entre as proposições aparentemente aplicáveis a um caso concreto e, havendo, resolver satisfatoriamente essa contradição. E o juiz – e aqui tomo esse operador do direito como exemplo, uma vez que ele é o derradeiro resolutor dos conflitos de interesses – deve fazer valer uma das normas ou proposições justificadamente, usando dos conhecidos critérios para a solução das antinomias jurídicas (hierárquico, de competência, cronológico e de especialidade).
Entretanto, antes de adentrarmos propriamente no trabalho do intérprete/aplicador do direito para a resolução das antinomias normativas, é de bom alvitre classificarmos estas (as antinomias) a partir de pontos de vista identificados pela doutrina especializada.
De início, as antinomias normativas podem ser classificadas, quanto ao grau de incompatibilidade existente, em reais ou aparentes.
Diz-se que uma antinomia normativa é real se, após a correta interpretação das normas em conflito e o adequado uso dos critérios para a solução das antinomias, a incompatibilidade entre elas não for de forma alguma resolvida. Teríamos, num mesmo ordenamento jurídico, duas normas, oriundas de autoridades igualmente competentes, com o mesmo plano de validade, que deixariam o intérprete/aplicador do direito numa situação invencível para a escolha de uma delas. Sem critério de solução razoável no ordenamento jurídico até então posto, a solução passaria pela edição de uma terceira e nova norma, que eliminasse o conflito.
Diz-se, ainda, que a antinomia real é raríssima, uma vez que o direito possui tanto a via aberta da interpretação das normas em conflito como um suficiente conjunto de critérios para a solução de quase todas as possíveis antinomias. Eu vou mais longe, entretanto. Arrisco dizer que no direito não existem antinomias reais. O intérprete/aplicador do direito, trabalhando com os atributos de unidade e coerência do sistema (leia-se: do ordenamento jurídico), com a ferramenta multiúso da interpretação e com os critérios para a solução da antinomias, sempre pode e deve encontrar uma solução interpretativa que necessariamente resolva o conflito. Em outras palavras, em direito, a solução sempre existe e todo conflito é apenas aparente. Aliás, no que toca aos princípios – e aqui faço uso da classificação das normas em regras e princípios, segundo a lição de Robert Alexy (1945-) –, muitos sequer admitem a existência de antinomias entre eles, uma vez que a ideia, na ponderação de princípios, é exatamente fazer com que a aplicação de um não signifique o completo aniquilamento do outro. Na verdade, eu considero o direito um sistema que labora por meio de uma “lógica paraconsistente”, que desafia o princípio da não contradição, mais ou menos nos moldes daquilo que foi imaginado pelo nosso Newton da Costa (1929-). Mas isso é assunto para uma tese de doutorado.
Por hoje, já tendo falado demais, rogo deixarmos as demais classificações das antinomias normativas para a próxima semana. Um tico de paciência, por favor.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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