A cidade de Shakespeare
Há teses – algumas verdadeiras “teorias da conspiração”, posso até
dizer – sobre quem teria sido William Shakespeare (1564-1616). Ou
melhor, sobre quem teria sido o verdadeiro autor das maravilhosas obras
que atribuímos a um tal Shakespeare. Como já disse certa vez aqui (vide a
crônica “Shakespeare anônimo”), antes de mais nada, algumas pessoas
simplesmente não conseguem acreditar que um filho de artesão,
comerciante de luvas, pudesse ter o conhecimento – do mundo clássico, da
filosofia e do direito, apenas para ficar em algumas temáticas
principais – que, naquelas obras, é transformado no mais puro ouro
literário. Como teria um homem de origem simples adquirido todo esse
conhecimento? Outras circunstâncias, como os chamados “lost years” (para
os quais não se tem registro do paradeiro de Shakespeare) e a ausência
de manuscritos autênticos, têm contribuído para a famosa controvérsia
autoral. E, como alternativa, outros nomes têm sido apontados como o
verdadeiro autor de “Othello” e de “Macbeth”. O grande filósofo e homem
público Francis Bacon (1561-1626) é um dos mais fortes candidatos.
Bagagem, a este, não faltava. Outro candidato badalado é William Stanley
(1561-1642), o 6º Earl de Derby. E até mesmo o escritor Christopher
Marlowe (1564-1593), contemporâneo de Shakespeare, é sugerido ao posto.
Talento, não resta dúvida, ele tinha. E por aí vai.
De minha
parte, seguidor da “Navalha” de Guilherme de Ockham (1285-1347), fico
com a explicação mais simples. A oficial. Shakespeare foi William
Shakespeare mesmo. Aquele cidadão nascido sob o reinado de Elizabeth I
(que foi de 1558 a 1603) na aprazível Stratford-upon-Avon. Por isso,
todas as vezes que pude, fui visitar essa comuna das “Midlands”, do
coração da Inglaterra, distante cerca de 170 km (de automóvel) de
Londres, que, já no tempo de Shakespeare, como registra “The Altlas of
Literature” (editor geral Malcolm Bradbury, Greenwich Editions, 2001),
era uma “market town” bem estabelecida e próspera. Hoje, para vocês
terem uma ideia, Stratford-upon-Avon tem em torno de 30 mil habitantes.
Mas recebe coisa de quase 3 milhões de turistas ao ano (bendito
turismo!).
Shakespeare nasceu ali, afirmo, em 1564, na famosa
casa da Henley Street. Foi depois trabalhar em Londres. Foi ator. Foi
poeta e dramaturgo. Foi produtor e empresário. Gozou seu auge, por assim
dizer, na grande capital do Reino. Mas Shakespeare voltou à sua terra
natal. Em 1611, segundo se registra, já rico e famoso e com o seu brasão
de armas. E foi viver em “New Place” até a sua morte.
Atualmente, a cidade Stratford-upon-Avon, claro, gira em torno da vida
do grande poeta e dramaturgo que escreveu como nenhum outro – sobre amor
e sexo, farsa e violência, direito e filosofia – na língua que
costumamos chamar de sua, a inglesa. A única e honrosa exceção talvez
seja a “Harvard House”, que foi o lar de uma tal Katherine Rogers, mãe
de John Harvard (1607-1638), o instituidor da Harvard University, que,
por razões plausíveis, é hoje a proprietária da casa.
O ponto
mais alto de qualquer visita a Stratford-upon-Avon é, seguramente, o
local de nascimento de Shakespeare (“Shakespeare’s Birthplace”), na
Henley Street. A casa de Shakespeare foi adquirida pelo poder público em
1847 e devidamente reformada para retornar ao estilo elisabetano
original. Deu muito certo. E, como bem descreve o meu “The GreenGuide –
Great Britain” (da famosa Michelin, 2014), hoje ela é “em parte museu
(incluindo a exibição dos objetos mais valiosos da família do dramaturgo
e uma edição do Primeiro Fólio de suas peças) e em parte santuário,
outrora visitado por [gente como] Dickens, Keats, Scott e Hardy. As
peças do poeta são encenadas pela própria trupe de atores profissionais
da casa, com performances ao vivo todos os dias”.
Mas a romaria
por Shakespeare não para por aí. Lembro-me muito bem da “Mary Arden’s
Farm”, a casa da mãe de Shakespeare, da “Anne Hathaway’s Cottage”, a
casa da família da mulher de Shakespeare, onde este, jovem, cortejou a
amada e de “New Place & Nash’s House”, conjunto formado pela casa
onde o poeta gozou seus anos de aposentadoria e pela casa de uma neta
sua, hoje belamente restaurada.
De Stratford, recordo-me, também,
com saudades, do passeio às margens do Avon, que empresta seu nome à
cidade. Da travessia do rio através da bela e antiga “Clopton Bridge”
(de 1497), o que, imagino, também deve ter sido feito pelo Bardo, muitas
vezes, naquele seu tempo. Do moderno “Royal Shakespeare Theatre”,
também às margens do rio. Da visita à “Holy Trinity Church”, ali
pertinho, onde foi batizado e está enterrado o próprio William
Shakespeare (muito embora essa bela Igreja mereça uma visita por si só).
Da caminhada pela Henley Street, com suas muitas lojinhas de
souvenires, indo e voltando da Brigde Street.
Finalmente, não
sei o porquê, toda vez que penso em Stratford-upon-Avon, lembro-me
insistentemente de dois estacionamentos (de carros) da cidade. Um fica
(ficava, pelo menos, quando da minha última visita) perto de um cinema; o
outro, da estação de trens. Eles não têm nada de especial. Mas são
recorrentes, num tipo de associação qualquer, na minha lembrança da
cidade de Shakespeare.
E o que isso quer dizer? Algum mistério
entre o céu e a terra com que devo gastar a minha vã filosofia? Teria
ele, Shakespeare, estado ali no passado? Deles – falo dos tais
estacionamentos – emana alguma intuição sobre a verdadeira identidade do
autor do “Hamlet” e do “King Lear”? Alguma outra teoria conspiratória
qualquer?
Não. Nada disso. Talvez tenha sido apenas o esforço
feito para guardar o local onde havia estacionado o carro recém-alugado.
Talvez seja, inconscientemente, a lembrança da bela moça que estacionou
ao meu lado, seguramente nem megera nem domada. Sei lá. Simplesmente a
memória nos prega muitas peças. E, portanto, não façamos “muito barulho
por nada”, como diria aquele que foi o maior conhecedor da alma humana.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP