10/07/2018


Marcelo Alves


Cabeça de juiz

No artigo da semana passada, defendi aqui, enfaticamente, a aplicação do princípio da igualdade para além do plano normativo. Para mim, a lei – que deve ser igual para todos – deve ser também, perante o Judiciário, se semelhantes as situações envolvidas, igualmente interpretada e aplicada. Para mim – e acredito que para o cidadão médio também –, nada mais justo que casos semelhantes sejam resolvidos de modo semelhante; ao revés, nada mais injusto que esses casos (semelhantes) sejam decididos, arbitrariamente, de modos diversos. E, para mim, um juiz deve sempre tentar associar a sua decisão, tenha ela o grau de originalidade que for, às decisões que outros juízes tomaram no passado em casos similares. Essa postura, de tratar os casos semelhantes do mesmo modo, é de imensa sabedoria. 

Mas há certamente quem se oponha a isso. E esses alegam, com frequência, um tal “princípio da persuasão racional do juiz”, que, levado ao extremo por alguns juízes, lhes dá licença para decidir como querem. Por isso não é sem alguma razão que se diz: “De cabeça de juiz, de barriga de grávida e de bunda de neném, nunca se sabe o que vem”. 

Acontece que essa visão refratária à igualdade – e, por consequência, também à estabilidade e à previsibilidade do direito – é de uma falta de pragmatismo inconcebível, pois, em prol de um suposto livre convencimento do juiz, joga fora todos esses valores (igualdade, estabilidade e previsibilidade). E, além de ser uma visão romântica e irreal, ela também é contrária ao interesse público. Indaga-se: há algum interesse público em fomentar a rebeldia ou as diferenças de tratamento em processos com questões fáticas e/ou de direito semelhantes? Claro que não. A quem serviria essa “mitológica” liberdade de convencimento? A pouquíssimos, a algumas vaidades no Judiciário e no Ministério Público e a alguns advogados mais espertos (não vai nenhuma crítica às classes como um todo, por óbvio). 

É claro que não se deseja tirar dos juízes o seu livre convencimento motivado. E muito menos transformar suas decisões numa simples mecânica de aplicar a lei ou um precedente ao caso em julgamento. Até porque, sei muito bem, isso é impossível. A atividade judicial nunca se reduz a uma simples operação lógica neutra, de verificar se os fatos do caso se subsumem numa hipótese legal ou num precedente e, assim, proferir uma sentença/solução (num silogismo em que a premissa maior é a lei/precedente, a menor é o fato e o corolário é a sentença). Outros fatores – fatores psíquicos e interesses os mais variados – sempre entram nessa equação. 

O que se deseja é evitar que esse livre convencimento vire arbitrariedade (leia-se: independência sem controle). Quer-se impedir, na medida do possível, que a sorte dos litigantes fique ao sabor das frequentes mudanças das composições dos tribunais e das mudanças de entendimento disso decorrentes (o que é muito comum hoje no Brasil, criando-se discursos escancaradamente contraditórios), que fique ao sabor da simples distribuição do feito a esse ou aquele órgão julgador ou, o que é ainda pior, que fique ao sabor da vaidade ou da idiossincrasia infrutífera do juiz de um caso. Apenas isso. 

É importante também deixar claro que não se quer impor aos juízes e aos tribunais amarras que lhes tolham a possibilidade de futuramente enxergar o direito de uma maneira nova, toda vez que o entendimento comumente adotado já se mostre superado pelos inevitáveis câmbios sociais. De modo algum. Se o direito deve tender à estabilidade, ele não pode ser inalterável. Devemos procurar conciliar essas duas realidades contraditórias: estabilidade e transformação. Achar uma fórmula que consiga conciliar um corpo de direito fixo, que não permita diferenciações discricionárias, com as ideias de transformação, desenvolvimento e criatividade. Essa, sim, seria uma regra de ouro. 

Houve um tempo – aliás, curiosamente, bem antes da criação de instrumentos como a súmula vinculante, a repercussão geral ou o recurso especial repetitivo – em que os ministros do Supremo Tribunal Federal também pensavam assim, como eu penso. E eis uma história, que parece quase uma anedota, contada por Francisco Rezek, quando ainda Ministro do STF, que bem ilustra o mal dessa super “licença” para decidir: “Houve uma época – membros mais antigos deste Tribunal o recordam – em que determinado Tribunal de Justiça, numa prestigiosa unidade da Federação, dava-se crônica e assumidamente a desafiar a jurisprudência do Supremo a respeito de um tema sumulado (um tema, por sinal, menor: a representatividade da ofendida em caso de crime contra os costumes). O Supremo tinha posição firme, constante e unânime a respeito, e certo Tribunal de Justiça, porque pensava diferentemente, dava-se à prática de decidir nos termos de sua própria convicção, valorizando a chamada ‘liberdade de convencimento’, própria de todo juiz ou tribunal. Resultado: todas essas decisões eram, mediante recurso, derrubadas por esta casa. Aquilo que deveria acabar na origem, à luz da jurisprudência do Supremo, só acabava aqui, depois de um lamentável dispêndio de recursos financeiros, de tempo e de energia, num Judiciário já congestionado e com tempo mínimo para cuidar de coisas novas. E quando acontecia de a jurisprudência do Supremo acabar não prevalecendo, e de a decisão do tribunal rebelde encontrar seu momento de glória? Quando o réu, porque assistido por advogado relapso, ou porque carente de outros meios, não apresentava recurso… Só nessa circunstância a infeliz rebeldia contra a jurisprudência do Supremo dava certo. Com todo respeito pelo que pensam alguns processualistas, não vejo beleza alguma nisso. Pelo contrário, parece-me uma situação imoral, com que a consciência jurídica não deveria, em hipótese alguma, contemporizar (trecho do seu voto na Ação Declaratória de Constitucionalidade 1-1/DF, Relator Ministro Moreira Alves, julgamento em 27.10.1993, publicação da decisão no DJ de 16.06.1995). 

Esse era o Supremo Tribunal Federal de Moreira Alves e Francisco Rezek. Mas as cabeças mudaram. Inclusive no STF. E, nesse ponto, com certeza, não foi para melhor. 


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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