O precursor
Interagir o direito com a literatura, interdisciplinarmente, faz
parte de uma tendência cada vez mais popular no mundo acadêmico
contemporâneo. Como já dito aqui, nos Estados Unidos da América, no
Reino Unido e na França (e, com uma velocidade menor, no Brasil), desde
pelo menos a década de 1980, os estudos de “law and literature” (direito
e literatura) vêm ganhando, paulatinamente, cada vez mais destaque na
teia dos “movimentos” interdisciplinares, com a publicação de livros e
artigos voltados à temática e mesmo com sua inclusão nos currículos dos
cursos de direito.
Essa “onda”, entretanto, teve um precursor, sobretudo no que toca
ao estudo do “direito na literatura” (“law in literature”, “le droit
dans la littérature”, “el derecho en la literatura”), ao qual se deve
fazer justiça: John Henry Wigmore (1863-1943).
Wigmore foi um jurista americano nascido em São Francisco, na
ensolarada Califórnia, mas que estudou direito na Harvard University, em
Massachusetts. Graduado em 1887, de início exerceu a advocacia na
cidade de Boston, nesse mesmo estado americano. Ligado profissionalmente
ao Japão, como consultor estrangeiro, foi professor, durante alguns
anos, mais precisamente de 1889 a 1892, na Universidade Keio, em Tóquio,
chegando a publicar considerável material sobre o direito e a história
do direito japoneses. Em 1893, Wigmore voltou aos Estados Unidos da
América, desta feita vinculado à Northwestern University, no estado
americano de Illinois. Ali quedou-se por muitos anos, sendo o
deão/diretor da Northwestern University School of Law de 1901 a 1929.
Faleceu já velhinho, aos 80 anos, em 1943, em Chicago, Illinois.
É desse período na Northwestern University School of Law,
especificamente de 1904 (muito embora revisado e reeditado pelo menos
duas vezes durante a vida do autor, em 1915 e 1940), o seu trabalho
jurídico mais famoso e relevante, o gigantesco “Treatise on the
Anglo-American System of Evidence in Trials at Common Law”, popularmente
conhecido como “Wigmore on Evidence”, cuja influência no direito
americano sobre a temática das “provas” ainda hoje se faz sentir. Nessa
questão, tão importante para o direito, mas hoje tão vilipendiada entre
nós, no Brasil, Wigmore ainda é o “bambambã”.
John Henry Wigmore, todavia, foi muito mais do que simplesmente o
deão/diretor de uma das mais prestigiosas faculdades de direito dos
Estados Unidos da América e o autor de um badalado tratado sobre provas.
No livro “Imaginar la ley: El derecho en la literatura” (título
original em francês: “Imaginer la loi: Le droit dans la Littérature”,
organizado por Antoine Garapon y Denis Salas, e publicado pela Editorial
Jusbaires na Argentina, com o apoio do Poder Judicial de la Ciudad de
Buenos Aires/Consejo de la Magistratura, em 2015), Anne Simonin,
historiadora e investigadora no Centre National de la Recherche
Scientifique – CNRS francês, no artigo “Make the Unorthodox Orthodox:
John Henry Wigmore y el nacimiento del interés del derecho por la
literatura”, relata que Wigmore foi, entre outras muitas coisas: (i)
“uma das personalidade mais influentes, junto com Roscoe Pound (Harvard
University), no que concerne à reforma dos estudos de direito nos
Estados Unidos, no começo do século XX”; (ii) um dos fundadores da
Harvard Law Review, enquanto estudante de direito nessa universidade, em
1886; (iii) um dos fundadores da Illinois Law Review, em 1906-1907,
enquanto professor e deão da Northwestern University School of Law;
(iv); “o fundador – e o primeiro presidente – do Instituto Americano de
Direito Penal e Criminologia, assim como do Jornal de Direito Criminal e
Criminologia (1910), a primeira publicação exclusivamente consagrada às
questões criminais no mundo anglo-saxão”; (v) autor de copiosa obra
original, com para lá 40 volumes, e editor de outro tanto de obras de
autores americanos e estrangeiros.
E o mais importante para nós, amantes da mistura do direito com a
literatura: John Henry Wigmore é o autor de uma lista de “romances
jurídicos” na qual está, como anota a mesma Anne Simonin, “a origem de
um dos grandes ramos institucionais do movimento 'Derecho y Literatura'
(Law in Literature, el derecho en la literatura)”. Isso foi – e
refiro-me aqui à primeira das listas de Wigmore, denominada “A List of
Legal Novels” – em 1900, curiosamente numa época em que se iniciava o
fenômeno aparentemente contraditório da especialização do direito nos
Estados Unidos da América. Outras listas de “Legal Novels” se sucederam,
revisadas ou atualizadas, publicadas até pelo menos 1922.
Segundo explica Richard Weisberg, professor de direito
constitucional na Cardozo School of Law, no artigo “Derecho y Literatura
em los Estados Unidos y en Francia. Una primeira aproximación” (que
também se acha no livro “Imaginar la ley: El derecho en la literatura”),
ao elaborar a tal lista “Wigmore desejava que os juízes e os advogados
incluíssem as obras de ficção em suas leituras cotidianas. Elaborando
uma lista de romances a serem lidos, embora predominantemente vitoriana
em suas escolhas, Wigmore insistiu na unidade das duas culturas, até
então claramente separadas: o direito e a literatura”.
Wigmore tinha razão!
E sobre isso, especialmente sobre a famosa “List of Legal Novels”, conversaremos qualquer dia desses. Não vai demorar.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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