10/10/2017


 
   
Marcelo Alves

 


O precursor


Interagir o direito com a literatura, interdisciplinarmente, faz parte de uma tendência cada vez mais popular no mundo acadêmico contemporâneo. Como já dito aqui, nos Estados Unidos da América, no Reino Unido e na França (e, com uma velocidade menor, no Brasil), desde pelo menos a década de 1980, os estudos de “law and literature” (direito e literatura) vêm ganhando, paulatinamente, cada vez mais destaque na teia dos “movimentos” interdisciplinares, com a publicação de livros e artigos voltados à temática e mesmo com sua inclusão nos currículos dos cursos de direito. 

Essa “onda”, entretanto, teve um precursor, sobretudo no que toca ao estudo do “direito na literatura” (“law in literature”, “le droit dans la littérature”, “el derecho en la literatura”), ao qual se deve fazer justiça: John Henry Wigmore (1863-1943). 

Wigmore foi um jurista americano nascido em São Francisco, na ensolarada Califórnia, mas que estudou direito na Harvard University, em Massachusetts. Graduado em 1887, de início exerceu a advocacia na cidade de Boston, nesse mesmo estado americano. Ligado profissionalmente ao Japão, como consultor estrangeiro, foi professor, durante alguns anos, mais precisamente de 1889 a 1892, na Universidade Keio, em Tóquio, chegando a publicar considerável material sobre o direito e a história do direito japoneses. Em 1893, Wigmore voltou aos Estados Unidos da América, desta feita vinculado à Northwestern University, no estado americano de Illinois. Ali quedou-se por muitos anos, sendo o deão/diretor da Northwestern University School of Law de 1901 a 1929. Faleceu já velhinho, aos 80 anos, em 1943, em Chicago, Illinois. 

É desse período na Northwestern University School of Law, especificamente de 1904 (muito embora revisado e reeditado pelo menos duas vezes durante a vida do autor, em 1915 e 1940), o seu trabalho jurídico mais famoso e relevante, o gigantesco “Treatise on the Anglo-American System of Evidence in Trials at Common Law”, popularmente conhecido como “Wigmore on Evidence”, cuja influência no direito americano sobre a temática das “provas” ainda hoje se faz sentir. Nessa questão, tão importante para o direito, mas hoje tão vilipendiada entre nós, no Brasil, Wigmore ainda é o “bambambã”. 

John Henry Wigmore, todavia, foi muito mais do que simplesmente o deão/diretor de uma das mais prestigiosas faculdades de direito dos Estados Unidos da América e o autor de um badalado tratado sobre provas. 

No livro “Imaginar la ley: El derecho en la literatura” (título original em francês: “Imaginer la loi: Le droit dans la Littérature”, organizado por Antoine Garapon y Denis Salas, e publicado pela Editorial Jusbaires na Argentina, com o apoio do Poder Judicial de la Ciudad de Buenos Aires/Consejo de la Magistratura, em 2015), Anne Simonin, historiadora e investigadora no Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS francês, no artigo “Make the Unorthodox Orthodox: John Henry Wigmore y el nacimiento del interés del derecho por la literatura”, relata que Wigmore foi, entre outras muitas coisas: (i) “uma das personalidade mais influentes, junto com Roscoe Pound (Harvard University), no que concerne à reforma dos estudos de direito nos Estados Unidos, no começo do século XX”; (ii) um dos fundadores da Harvard Law Review, enquanto estudante de direito nessa universidade, em 1886; (iii) um dos fundadores da Illinois Law Review, em 1906-1907, enquanto professor e deão da Northwestern University School of Law; (iv); “o fundador – e o primeiro presidente – do Instituto Americano de Direito Penal e Criminologia, assim como do Jornal de Direito Criminal e Criminologia (1910), a primeira publicação exclusivamente consagrada às questões criminais no mundo anglo-saxão”; (v) autor de copiosa obra original, com para lá 40 volumes, e editor de outro tanto de obras de autores americanos e estrangeiros. 

E o mais importante para nós, amantes da mistura do direito com a literatura: John Henry Wigmore é o autor de uma lista de “romances jurídicos” na qual está, como anota a mesma Anne Simonin, “a origem de um dos grandes ramos institucionais do movimento 'Derecho y Literatura' (Law in Literature, el derecho en la literatura)”. Isso foi – e refiro-me aqui à primeira das listas de Wigmore, denominada “A List of Legal Novels” – em 1900, curiosamente numa época em que se iniciava o fenômeno aparentemente contraditório da especialização do direito nos Estados Unidos da América. Outras listas de “Legal Novels” se sucederam, revisadas ou atualizadas, publicadas até pelo menos 1922. 

Segundo explica Richard Weisberg, professor de direito constitucional na Cardozo School of Law, no artigo “Derecho y Literatura em los Estados Unidos y en Francia. Una primeira aproximación” (que também se acha no livro “Imaginar la ley: El derecho en la literatura”), ao elaborar a tal lista “Wigmore desejava que os juízes e os advogados incluíssem as obras de ficção em suas leituras cotidianas. Elaborando uma lista de romances a serem lidos, embora predominantemente vitoriana em suas escolhas, Wigmore insistiu na unidade das duas culturas, até então claramente separadas: o direito e a literatura”. 

Wigmore tinha razão!

E sobre isso, especialmente sobre a famosa “List of Legal Novels”, conversaremos qualquer dia desses. Não vai demorar.


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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