Quem decide?
No artigo “Ratio e dictum”, publicado aqui semana passada, busquei explicar os significados e a importância de duas expressões - “ratio decidendi” e “obiter dictum” - que estão hoje na “moda jurídica”, especialmente quando se trabalha a temática dos precedentes judiciais, sendo frequentemente mencionadas nos pronunciamentos escritos e orais dos ministros do nosso Supremo Tribunal Federal.
Desse artigo, levando em consideração os vários comentários que recebi (sobretudo numa rede de Procuradores da República da qual faço parte), um dos pontos que mais chamou a atenção foi a afirmação de que “nos sistemas jurídicos inglês e americano, quem aponta/decide qual é a '’ratio decidendi’' de um precedente, e se essa é ou não de seguimento obrigatório, não é o juiz ou tribunal que julgou o precedente, mas, sim, o juiz do caso em julgamento que tem a incumbência de interpretar o precedente em cotejo com o caso que julga, para extrair, se for o caso, a proposição que deve obrigatoriamente seguir”.
Como já havia prometido na semana passada, mas também em atenção a esses comentários, vou hoje explicar a afirmação que fiz.
Antes de mais nada, é preciso distinguir os sentidos descritivo e prescritivo de “ratio decidendi”. O sentido descritivo de “ratio decidendi” põe em relevo ou quer saber, tão-somente, do “modus” como o juiz do precedente chegou a sua decisão. Já o sentido prescritivo de “ratio decidendi” põe em relevo ou identifica a proposição jurídica, derivada do precedente, que vincula ou obriga a decisão do caso posterior; em outras palavras, identifica a proposição de direito prescrita pelo caso anterior que no caso posterior deve ser seguida.
Julius Stone, no artigo “The Ratio of the Ratio Decidendi” (1959) 22 MLR 597, é um dos autores que falam da distinção existente entre o uso da expressão “ratio decidendi que descreve o processo de justificação através do qual a decisão foi alcançada (a ratio decidendi ‘descritiva’), e aquela que identifica e delimita a justificação que um tribunal posterior está obrigado a seguir (a ratio decidendi ‘prescritiva’ ou ‘obrigatória’)”. Stone, quando trata como sinônimos as expressões “prescritiva” e “obrigatória”, já nos intui uma noção do papel crucial do juiz do caso posterior, ou seja, do caso em julgamento.
E é partindo dessa distinção, dando um maior relevo ao sentido prescritivo de “ratio decidendi”, ou seja, ao fato dela vincular decisões futuras, que as cortes inglesas, por exemplo, expressamente reconhecem ao juiz do caso em julgamento a incumbência de interpretar o precedente em cotejo com o caso que julga, para extrair, se for o caso, a proposição que deve obrigatoriamente seguir. Até porque, na Inglaterra, pelo que sei, não constam dos precedentes judiciais (ou, pelo menos, não deve constar) a afirmação: “essa é 'ratio decidendi' vinculante deste caso”. A afirmação de Lord Jessel em Osborne to Rowlett (1880) 13 ChD 774 ilustra bem o entendimento das cortes inglesas: “Agora, eu tenho frequentemente dito, e eu repito, que a única coisa numa decisão que é obrigatória como autoridade para um juiz subsequente é o princípio fundado no qual o caso foi decidido; mas não é adequado que o caso deva ser decidido com base num princípio, se não é o mesmo um princípio correto, ou é um princípio não aplicável ao caso; e é papel para um juiz subsequente dizer se um princípio é correto ou não, e, se não o é, ele mesmo pode estabelecer o princípio verdadeiro. Nesse caso, a decisão prévia deixa de ser uma autoridade obrigatória ou guia para o juiz subsequente”.
Todavia, deve ser lembrado que o poder de interpretação do juiz ou tribunal do caso subsequente tem seus limites; e esses limites, estão na própria doutrina do stare decisis.
Primeiramente, como já dito na semana passada, embora o conceito de “ratio decidendi” nas cortes inglesas continue sendo algo um tanto “sem princípios e inconsistente” (vide G. Gottlieb em “The Logic of Choice: An Investigation of the Concepts of Rule and Rationality”, Allen & Unwin, 1968), o fato é que os juristas do “common law” já chegaram a algumas soluções de compromisso ou testes para a identificação da “ratio decidendi” de um caso. Ou seja, muito longe de ser “a casa da mãe Joana”, o juiz do caso subsequente atua dentro de certos parâmetros.
Em segundo lugar, a doutrina do stare decisis impõe uma obediência sensata (leia-se aqui ponderada, técnica e responsável) ao precedente pelo juiz do caso posterior semelhante em julgamento. Como ressaltado por Lord Goff em Elliott v. C (A Minor) (1983) 2 ALL ER 1005: “Eu sinto (...) que faltaria com a sinceridade se ocultasse minha infelicidade com a conclusão que eu me sinto compelido a alcançar. Na minha opinião, embora seja claro que os tribunais deste país estão obrigados pela doutrina do precedente, sensatamente interpretada, mesmo assim seria irresponsável para os juízes atuarem como máquinas, rigidamente aplicando precedentes sem considerar as consequências. Onde, portanto, parece à primeira vista que o precedente compele um juiz a chegar a uma conclusão que ele percebe ser injusta ou não apropriada, ele está, eu considero, sob um dever positivo de examinar os precedentes relevantes com cuidado escrupuloso para averiguar se ele pode, dentro dos limites impostos pela doutrina do precedente (sempre sensatamente interpretada), legitimamente interpretar ou qualificar o princípio expresso nos precedentes para alcançar o resultado que ele entende como justo ou apropriado no caso particular. Eu não disfarço o fato de que eu busquei desempenhar essa função no caso presente”.
Bom, dito isso, espero haver cumprido minha missão, sendo pelo menos minimamente didático em minhas explicações sobre tal “ratio decidendi”.
Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL Mestre em Direito pela PUC/SP |
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