“Ratio” e “dictum”
Volto hoje a tratar do “juridiquês”, ou seja, do empolado vocabulário dos juristas, que é por muitos abertamente criticado (quase sempre com razão).
Minha meta é (tentar) explicar o significado e a importância de duas expressões - “ratio decidendi” e “obiter dictum” - que estão hoje na “moda jurídica”, sobretudo quando se trabalha a temática dos precedentes judiciais, sendo frequentemente citadas, por exemplo, nos votos e nas manifestações orais dos ministros do nosso Supremo Tribunal Federal.
Comecemos pelo significado de “ratio decidendi”, que é fundamental para a teoria dos precedentes judiciais. De fato, embora seja comumente afirmado que, pela doutrina do "stare decisis" (ou do precedente obrigatório), as cortes devem seguir o precedente existente quanto ao caso em julgamento, na verdade, como bem explicam R. Cross e J. H. Harris (em “Precedent in English Law”, Clarendon Press, 2004), o que as cortes estão obrigadas a seguir é a “ratio decidendi” (ou a razão de decidir) desse precedente. Isso fica claro nas decisões das cortes inglesas, como, por exemplo, na decisão da Court of Appeal em Ashville Investments Ltd v Elmer Contractors Ltd [1988] 3 WLR 867. E o mesmo se dá no direito americano, como se pode ver na declaração do Chief Justice John Marshall (1755-1835) em Cohens v. Virginia 19 U.S. 264, 399, 5 L.Ed. 257 (1821), no sentido de que uma “dictum” pode “ser respeitada, mas não deve vincular o julgamento num processo subsequente quando o mesmo ponto é colocado para decisão”.
Trata-se de uma das questões mais controvertidas da doutrina do “stare decisis”, pois, afora alguns pontos em que há certa concordância, a doutrina diverge - e muito - na definição do que seja “ratio decidendi” e na escolha do método mais eficaz de identificá-la no bojo de um precedente judicial.
Há muitas definições de “ratio decidendi”, podendo-se apontar, com apoio na literatura jurídica inglesa, sem querer de modo algum esgotar o assunto, algumas delas: (i) a regra de direito explicitamente estabelecida pelo juiz como base de sua decisão, isto é, a resposta explícita à questão de direito do caso; (ii) a razão explicitamente dada pelo juiz para decisão, isto é, a justificação explícita para a resposta dada à questão do caso; (iii) a regra de direito implícita nas razões do juiz para justificação de sua decisão, isto é, a resposta implícita à questão de direito do caso; (iv) a razão implicitamente dada pelo juiz para decisão, isto é, a justificação implícita para a resposta dada à questão do caso; (v) a regra de direito na qual se fundamenta o caso ou se cita como autoridade para um posterior intérprete, isto é, a resposta dada à questão de direito do caso; (vi) a proposição ou regra sem a qual o caso seria decidido de forma diversa; (vii) a simples combinação fatos/decisão; e por aí vai.
Todavia, pelo que sei, nenhuma das definições aqui reproduzidas é admitida sem reservas. A verdade é que o conceito de “ratio decidendi” é bastante difícil de precisar e, apesar de os juristas do “common law” terem sido capazes de chegar a algumas soluções de compromisso ou testes para a identificação da “ratio decidendi” de um caso, o fato é que o conceito de “ratio decidendi”, mesmo nas cortes inglesas, continua sendo algo, como já dizia G. Gottlieb (em “The Logic of Choice: An Investigation of the Concepts of Rule and Rationality”, Allen & Unwin, 1968), “sem princípios e inconsistente”.
Já a definição mais corriqueira de “obiter dictum” (ou simplesmente “dictum”), como já dito aqui em outra oportunidade (vide o artigo “obiter dictum”), é obtida negativamente, a partir de uma oposição ao que seja a “ratio decidendi” (ou razão de decidir) de um caso. Se uma proposição ou regra de direito constante de um caso não faz parte da sua “ratio decidendi”, ela é, por definição, “dictum” ou “obiter dictum”, e, consequentemente, não obrigatória. No mais, embora haja quem faça a distinção entre “dictum” e “obiter dictum” (a primeira teria uma ligação mais próxima com a “ratio” do precedente), em regra essas expressões são usadas indiscriminadamente.
Por fim, registre-se o seguinte: conceitualmente estabelecida a vinculatividade de uma categoria e não vinculatividade da outra, a primeira coisa que o operador do direito deve fazer, ao analisar um precedente judicial, é tentar identificar, distinguindo do que é “dictum”, “obiter dictum” ou é mera questão de fato, qual proposição forma sua “ratio decidendi”. Entretanto, frequentemente, em determinados precedentes, não há uma distinção precisa entre “ratio decidendi” e “obiter dictum”. De fato, para desespero dos operadores do direito, como lembra Neil Duxbury (em “The nature and authority of precedent”, Cambridge University Press, 2008), “a distinção entre 'ratio decidendi' e 'obiter dictum', embora importante, não é facilmente feita”. Até porque, nos sistemas jurídicos inglês e americano, quem aponta/decide qual é a “ratio decidendi” de um precedente, e se essa é ou não de seguimento obrigatório, não é o juiz ou tribunal que julgou o precedente, mas, sim, o juiz do caso em julgamento que tem a incumbência de interpretar o precedente em cotejo com o caso que julga, para extrair, se for o caso, a proposição que deve obrigatoriamente seguir. Essa, aliás, é uma questão que podemos discutir, com mais profundidade, em uma outra ocasião.
Bom, espero ter sido minimamente didático em minhas explicações. Como já disse certa vez, com o tal “juridiquês” nunca se está seguro disso. Imaginem num assunto tão complexo como os significados de “ratio decidendi” e “obiter dictum”.
Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL Mestre em Direito pela PUC/SP |
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