17/11/2015


   
Marcelo Alves

Sobre Hugo Grócio
A Holanda nos deu um dos mais célebres juristas de todos os tempos: Hugo Grócio (1583-1645), que é considerado um dos pais do jusnaturalismo moderno e do direito internacional como hoje conhecemos. No meu tempo de UFRN, lá se vão mais de vinte anos, aqui e acolá, nas aulas de introdução ao estudo do direito, filosofia do direito e direito internacional, sempre ouvíamos falar desse tal Hugo, também nominado Grotius ou Groot.

Nascido em 1583, Hugo Grócio é natural da cidade de Delf, que fica no sul da Holanda, mais precisamente entre as mais famosas (cidades) de Roterdã e Haia. Filho de pais muito cultos e influentes, Grócio foi desde muito cedo apresentado a Aristóteles (384aC-322aC) e à filosofia humanista. Menino prodígio, começou formalmente a estudar direito aos onze anos de idade, em 1594, na Universidade de Lieden, a mais antiga do seu país natal. Formou-se aos quinze anos, em 1598, tanto pela Universidade de Lieden como pela Universidade de Orleans, na França, onde esteve acompanhando missão diplomática de seu país perante a corte do rei francês Henrique IV (1553-1610). As histórias (ou lendas) sobre a genialidade do “menino” holandês são inúmeras.

Hugo Grócio começou sua carreira como advogado em Haia em 1599. Dois anos mais tarde, tornou-se historiador para o Estado holandês. Sua ligação com o direito internacional tornou-se estreita e definitiva em 1604, quando foi apontado para defender o Estado holandês, que havia “sequestrado” o navio português Santa Catarina, no estreito de Singapura, em meio às guerras entre Espanha e Holanda. No mesmo ano de 1604, foi nomeado conselheiro do príncipe Maurício de Orange-Nassau (1567-1625).

Casou-se em 1608. Entre outras coisas, foi procurador-geral do Fisco holandês e prefeito da cidade de Roterdã. Em 1618, envolvido em questões teológicas, ao lado Johan van Oldenbarnevelt (1547-1619) e em oposição a Maurício de Orange-Nassau, acabou preso. Em 1619, foi sentenciado à prisão perpétua. Em 1620, foi declarado culpado de “laesa majestas”. Fugiu para Paris nesse mesmo ano. Voltou à Holanda em 1631. Fugiu novamente, em 1632, para a Alemanha. Por anos, trabalhou como diplomata para a Suécia. Além de homem público e jurista, foi também poeta, dramaturgo, filósofo e teólogo. Faleceu em 1644, em Lubeck, na Alemanha.

Grócio escreveu inúmeros livros. O primeiro deles, aos dezesseis anos, foi de anotações e correções acadêmicas sobre livro do escritor latino Martianus Capella (nascido e falecido entre os séculos IV e V dC. Em 1604 (ou 1605), veio o que muitos chamam de seu primeiro livro (considerando que a obra anteriormente citada foi de anotações e correções): “De indis”, que está relacionado ao já referido incidente com o navio português Santa Catarina. O muitíssimo famoso “Mare Liberum” (“Mar livre”), no qual ele defende a internacionalidade dos mares e que teve enorme impacto em sua época, é de 1609. Sua obra magna, pela qual Grócio é reverenciado até hoje, “De Jure Belli ac Pacis” (“O direito da guerra e da paz”), escrita no exílio na França, é de 1625. Entre essas datas, nas letras e sobre arte, teologia, filosofia e direito, registram-se outros incontáveis títulos.

Acredito que a enorme e perene contribuição de Hugo Grócio para o direito pode ser sistematizada em três áreas: no jusnaturalismo, no direito internacional e, mais especificamente, no direito da guerra.

Antes de mais nada, interagindo com a Escolástica espanhola, sobretudo com Francisco de Vitória (1483-1546) e Francisco Suárez (1548-1617), Grócio desenvolveu a tese, crucial para o chamado “jusracionalismo”, de que o fundamento do direito natural estava na natureza racional do homem e não em um comando de Deus. Tornou-se célebre a sua afirmação, constante de “De Jure Belli ac Pacis”, de que o direito natural seria justo e verdadeiro mesmo que Deus, por mais absurdo que isso fosse, não existisse. Embora derivada da Escolástica espanhola, a estrutura geral e muitos dos elementos da obra do famoso holandês são, como reconhecem os especialistas, marcadamente originais. No mais, devemos lembrar que o impacto das teses filosóficas e jurídicas no mundo circundante dependem muito do contexto histórico e social no qual vêm a lume; nesse ponto, Grócio tomou vantagem de um processo de secularização da cultura que se expandia durante o seu tempo.

As ideias de Grócio tiveram grande impacto no direito internacional público, sobretudo naquilo que chamamos “direito do mar” e “direito de guerra”, que penosamente se desenvolvia no mundo cristão, onde guerras eram travadas, ele mesmo afirma, “com uma falta de freios vergonhosa até mesmo para povos bárbaros”, como se uma norma universal autorizasse a prática de todo tipo de crime. Acreditando na existência de princípios e regras fundadas na razão, compartilhadas por todos os homens, Grócio defendeu a ideia de uma “lei” comum para a comunidade internacional, um pacto a ser observado por todas as nações, que, entre outras coisas, contivesse essa violência sem limites.

Mais especificamente, com Grócio (que se confessava chocado com as atrocidades das guerras entre a Espanha e a Holanda e entre católicos e protestantes), como explica Antonio Padoa Schioppa (em “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”, edição da WMF Martins Fontes, 2014), “os temas clássicos do direito de guerra e do conceito de guerra justa – mesmo que, em princípio, o autor compartilhasse a ideia de que 'a guerra está muito distante de qualquer princípio de direito' – recebiam, na base teórica que já abordamos, uma organização nova: é o que acontece com os capítulos sobre os prisioneiros de guerra, sobre o butim, sobre o valor da palavra empenhada e da confiança (fides) entre os inimigos, sobre as represálias e assim por diante, análises nas quais o exame dos costumes se faz acompanhar de enunciação das possíveis atenuações que os tornem menos arbitrários e menos duros”.

Bom, Grócio, com sua “vida de desterrado” e as suas polêmicas, estava certo em muitas coisas. O curioso é que, ao falecer, ele teria dito: “mesmo tendo compreendido muitas coisas, nada realizei”. Nesse ponto, que ele me desculpe, estava errado. O tal Hugo do meu tempo de UFRN fez muito pelo direito.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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