01/03/2015

Marcelo Alves
Marcelo Alves


Sobre Edward Coke

Não faz muito tempo, escrevi aqui sobre William Blackstone (1723-1780), o autor dos renomados “Commentaries on the Law of England”, por muitos considerado o grande compilador e sistematizador do “common law” inglês. Na ocasião, lembrei que Blackstone, embora celebrado no ambiente do “common law” (tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos da América), é pouco conhecido entre os juristas da tradição do “civil law”. Hoje, seguindo essa toada de tentar divulgar entre nós o direito anglo-americano, vou escrever sobre o outro grande jurista inglês: Sir Edward Coke (1552-1634).

Nascido na pequenina vila de Mileham, no condado de Norfolk, Edward Coke, após a realização do ensino fundamental e médio de sua época, teve consolidada sua formação, direcionada ao estudo do Direito, no Trinity College da Universidade de Cambridge. Talentoso, sua ascensão foi meteórica. Elegeu-se Membro do Parlamento inglês em 1589 e, já em 1592, “Speaker of the House” (algo semelhante ao nosso Presidente da Câmara dos Deputados”). Um ano mais tarde foi nomeado “Attorney General of England” (cargo semelhante ao nosso Procurador-Geral da República), tendo se mostrado competente acusador em casos importantíssimos, tais como o da acusação de traição de Sir Walter Raleigh (1552-1618) e dos conspiradores da famosa “Gunpowder Plot” (a “Conspiração da Pólvora”, de 1605). Coke foi ainda “Chief Justice” (leia-se, para facilitar, Presidente) de dois importantíssimos tribunais ingleses da época: a “Court of Commom Pleas” (1606) e o “King's Bench” (1613). E esses foram apenas alguns dos cargos exercidos por esse brilhante advogado e político. Na verdade, Coke foi, certamente, o maior jurista inglês durante os reinados de Elizabeth I (de 1558 a 1603) e James I (de 1603 a 1625).

Edward Coke foi sobretudo um excepcional constitucionalista em um país de Constituição não escrita, no qual não há, pelo menos assim classicamente se diz, controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. Foi um defensor da Constituição britânica mesmo em oposição às vontades do Monarca e do Parlamento. Como juiz, sua decisão no caso Thomas Bonham v College of Physicians 8 Co. Rep. 114 (Court of Common Pleas [1610]), conhecido como “Dr. Bonham's Case”, é famosíssima. Em síntese, ali é afirmado que o “common law” (leia-se: o direito primordial inglês), através de suas cortes, deve “controlar” os atos do Parlamento (leia-se: as leis) e, em sendo eles desarrazoados ou repugnantes (“repugnant”), declará-los nulos (“void”). Muito se discute sobre a real intenção de Coke com essa decisão, mas, sem dúvida, aí está uma semente daquilo que hoje chamamos de controle jurisdicional de constitucional das leis.

É verdade que, na Inglaterra, como sabemos, acabou por prevalecer o Princípio da Supremacia do Parlamento, imaginado (ou, pelo menos, enfaticamente defendido) pelo já citado William Blackstone, mais de um século depois, em seus “Commentaries on the Law of England”. Entretanto, ironicamente, a tese de Coke em “Dr. Bonham's Case” foi exportada para os Estados Unidos da América, onde ganhou o aplauso dos “Founding Fathers” daquela imensa República, sobretudo de John Marshall (1755-1835), o mais célebre dos “Chief Justices” da “US Supreme Court”. Alguns chegam a afirmar que o “Dr. Bonham's Case” foi a inspiração, até pela coincidência no uso das expressões “repugnant” e “void”, para a decisão de Marshall em Marbury v. Madison 5 US 137, 1 Cranch 137, 2 L.Ed. 60 (1803), caso no qual, segundo convencionado, está a origem do “judicial review of the constitutionality of the legislation” (que chamamos de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis - modelo difuso).

Como jurista, Edward Coke foi, também, sobretudo quando já mais velho, um grande legislador. Basta lembrar que ele foi o idealizador, como presidente da comissão criada na “House of Commons” especialmente para sua elaboração, da “Petition of Right” (1628), um dos mais importantes diplomas legais do constitucionalismo inglês ao lado da “Magna Carta” (1215) e do “Bill of Rights” (1689). A influência da “Petition of Right”, aliás, transborda as fronteiras do Reino Unido, tendo servido de inspiração, como amplamente reconhecido, para outros monumentos legais, como a Constituição americana (1787) e o seu “Bill of Rights” (1789) e a Declaração Universal dos Direitos Homem das Nações Unidas (1948).

E se não bastasse isso, Edward Coke também é autor de obras “doutrinarias” fundamentais para a compreensão do “common law” com um todo. Suas duas obras mais importantes - os 13 volumes de seus “Law Reports”, conhecidos como “Coke's Reports” e os seus “Institutes of the Lawes of England” em 4 volumes (1628-1644) - foram e são ainda hoje estudados e citados tanto na Inglaterra como nos EUA. Para se ter uma ideia, durante décadas, essas duas obras foram as principais fontes de conhecimento do “common law” para os colonos e os primeiros republicanos da América do Norte.

É verdade que Edward Coke também passou por maus momentos. Foi removido de suas funções judiciais em 1620. Chegou a ser preso. Esse é preço que se paga por defender a Constituição contra o Parlamento e até mesmo contra o Rei de plantão. Mas ele retornou à cena política nos seus anos de madureza. E, desta feita, como já visto, com a “petição dos direitos do cidadão” na mão.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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