Crônica/artigo:
O conselho francês
Originalmente construído pelo Cardeal Richelieu (1585-1642), o Palais
Royal foi posteriormente incorporado à Coroa Francesa (e lá morou o
jovem Luís XIV), passando, no século XVII, às mãos dos Duques de Orleans
(que deram à França o Rei Luís Felipe). Foi ponto de jogatina e
prostituição e, mais importante, epicentro da Revolução Francesa. Hoje,
abriga a Comédie Française, lojas de luxo e antiquários. Com um jardim
interno belíssimo, é um dos mais importantes palácios de Paris.
Pois é ali, no Palais Royal - que merece ser visitado, seja você
jurista ou não -, que fica o famoso “Conseil Constitucionnel” da França
(assim como ali também está o “Conseil d'État”, a Suprema Corte da
Justiça Administrativa francesa), órgão essencialmente responsável por
realizar o controle de constitucionalidade das leis naquele adorável
país.
O Conselho Constitucional da França é composto por nove
conselheiros. Três são indicados pelo Presidente da República, três pelo
Presidente da Assembleia Nacional e três pelo Presidente do Senado. Não
há requisito de idade ou de profissão para compor a Corte (ou seja, não
precisa ser jurista ou bacharel em direito, sendo estes, pelo que sei, a
minoria). O mandato é de nove anos, vedada a recondução (salvo do
membro que tenha assumido, em substituição, um mandato tampão). A cada
três anos, para não haver a mudança concomitante de todos os membros,
três novos conselheiros são indicados (um por cada um dos Presidentes
acima referidos). O Presidente do Conselho Constitucional é indicado
pelo Presidente da República. Curiosamente, os Ex-Presidentes da
República vivos - atualmente, Valéry Giscard d'Estaing, Jacques Chirac e
Nicolas Sarkozy - são membros natos do Conselho, embora, por tradição,
não exerçam os seus ofícios.
Tradicionalmente, diz-se que o
controle de constitucionalidade exercido pelo Conselho Constitucional
francês é político (e não jurisdicional), já que entregue a um órgão de
natureza marcadamente política, cujas decisões têm efeitos eminentemente
políticos. Razões históricas e principiológicas explicam essa visão
peculiar francesa em desfavor do controle jurisdicional de
constitucionalidade: um apego extremista ao princípio da separação dos
poderes; a desconfiança para com Judiciário que, ao tempo da Revolução
Francesa, representava o “ancient régime”; e da ideia de Sièyes
(1748-1836) de um “Jurie Constitutionnarire” acima dos outros poderes do
Estado. A França, assim, sempre foi o exemplo mais citado de país que
adota o controle político de constitucionalidade das leis, sendo verdade
que em nenhuma das várias Constituições que a França já possuiu,
adotou-se, expressamente, um controle jurisdicional de
constitucionalidade. Sempre o controle é confiado a um órgão com forte
viés político. Sob o pálio da Constituição francesa de 1958, ainda em
vigor, a responsabilidade deste controle é depositada no Conselho
Constitucional.
Representando essa visão tradicional, certa vez
argumentou Mauro Cappelletti (em “O controle judicial de
constitucionalidade das leis no direito comparado”, publicado entre nós
em 1984): “É suficientemente clara - e, de resto, mais ou menos
reconhecida por numerosos estudiosos franceses - a natureza não
propriamente jurisdicional da função exercida pelo Conseil
Constitucionnel: e isto não apenas, como escreve um autor, pela natureza
antes política que judiciária do órgão, natureza que se revela, quer na
escolha e nos status dos membros que dele fazem parte, quer, sobretudo,
nas diversas competências do próprio órgão e nas modalidades de seu
operar; mas também e especialmente pelo caráter necessário, pelo menos
no que diz respeito às leis orgânicas, do controle que se desenvolve,
portanto, sem um verdadeiro recurso ou impugnação de parte (ubi non est
actio, ibi non est jurisdictio!), bem como pelo caráter preventivo da
função de ‘controle’ por aquele órgão exercida. Tal função vem, na
verdade, a se inserir - necessariamente, no que concerne às ‘leis
orgânicas’, e somente à instância de certas autoridades políticas, no
que se refere a outras leis - no próprio item da formação da lei na
França: é, afinal de contas, não um verdadeiro controle (a posteriori)
da legitimidade constitucional de uma lei para ver se ela é ou não é
válida e, por conseguinte, aplicável, mas, antes, um ato (e precisamente
um parecer vinculatório) que vem a se inserir no próprio processo de
formação da lei - e deste processo assume, portanto, a mesma natureza”.
Todavia, mais recentemente, tem-se enxergado por uma perspectiva
diferente a situação do controle de constitucionalidade francês. É muito
interessante a abordagem feita por Guillaume Drago (em “Contentieux
constitutionnel français”, de 2006, publicação da editora francesa PUF),
entre outros, no sentido de que, em virtude dos procedimentos
legalmente adotados e de sua própria jurisprudência, o Conselho
Constitucional Francês tem caminhado e se aproximado, cada vez mais (e
quiçá já tenha alcançado), o modelo de Justiça Constitucional kelseniano
ou europeu. Sem dúvida, outrora hostil por tradição política a toda
forma de controle jurisdicional das leis, a França, em 1958, dá um
primeiro passo em um caminho sem volta rumo ao modelo de Justiça
Constitucional europeu. Tem-se, no Conselho Constitucional Francês, a
essência do modelo kelseniano: um único tribunal, chamado Conselho
(Constitucional), competente para apreciar, de modo concentrado, direto e
em abstrato, a constitucionalidade de atos normativos, embora, não se
negue, em caráter essencialmente preventivo (e não repressivo).
Não sei você, caro leitor, mas, de minha parte, tendo a concordar com
essa abordagem mais recente, que chamarei de evolutiva. Sobretudo
levando em conta o novo o art. 61-1 da Constituição francesa, inserido
pela Lei Constitucional de 23 de julho de 2008. Com fundamento nele,
desde 2010, caso surja, em processo perante uma corte - não importa se
da Justiça Comum ou da Justiça Administrativa -, a alegação de que uma
disposição legislativa viola os direitos e liberdades garantidos pela
Constituição, o Conselho Constitucional pode ser provocado, pelo
“Conseil d'État” ou pela “Cour de cassation” (a Suprema Corte da Justiça
Comum francesa), a decidir prejudicialmente essa questão
constitucional. Trata-se, claramente, de hipótese de controle repressivo
ou “contrôle a posteriori” (como prefere chamar o próprio Conselho
Constitucional francês).
E que tal conversamos mais sobre isso outro dia? Quem sabe num bate-papo nos jardins do Palais Royal...
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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